Hoje nós temos dois tópicos para a nossa narrativa, querido leitor. E aqui estão eles: irmãos e mentiras. Por qual devemos começar?
As mentiras. Em que momento da história poderiam ter surgido? Existem muitas pesquisas sobre a mentira e seus efeitos dentro da sociedade, mas nenhuma delas soube nos dar exatamente a época em que nossos antepassados começaram a mentir. Supostamente, não foi muito depois de termos aprendido a nos comunicar por meio da linguagem. Sim, é ai que você começa a imaginar os primeiros Homo sapiens alegando “Não, não fui eu que comi toda aquela carne de mamute", mesmo estando com a barriguinha cheia. A mentira é a nossa melhor forma de autodefesa, todos nós usamos dela para os nossos propósitos. Nós nos tornamos mentirosos ainda na infância entre 2 a 3 anos de idade, e essa é uma habilidade adquirida por meio do nosso convívio social. Você certamente se lembra da história do Pinóquio, o trapaceiro menino de madeira cujo nariz crescia sempre que contava uma mentirinha. Esse conto geralmente servia como incentivo para as crianças falarem sempre a verdade pois no final da história, Pinóquio, recebeu sua recompensa por ser um menino bonzinho e sincero. Porém, nem sempre os mentirosos recebem algo agradável por falar a verdade.
E é agora que nós entramos no tópico irmãos e as nossas relações mentirosas. Afinal, quem melhor que um irmão para ser cúmplice de suas mentiras?
Nas primeiras fases da minha infância, eu não era de mentir. Logo, tinha duas mães que podiam farejar uma mentira à 500km de distância. Então, minhas irmãs e eu nem nos atrevíamos. Como prova disso, minha primeira grande mentira na infância foi aos onze anos de idade, para encobertar Agatha enquanto ela se atracava aos beijos com Joseph nos jardins na parte de trás da nossa casa. Para as nossas mães, Agatha estava me ensinando a jogar voleibol. Sim, eu já segurei muitas velas. E as consequências de todas essas encobertas logo vai estar completando seus quatorze anos, meu sobrinho Joe e o casamento quase forçado da minha irmã.
Mas apesar desse deslize, Agatha e eu não éramos as maiores mentirosas da família, o cargo ficava nas mãos de Arthur. O cretino sempre teve o dom. Era o único menino das cinco crianças Mills Caliman, então era o mais mimado e ardiloso. Arthur estava sempre tentando chamar a atenção de todas nós para si, não é por menos que se tornou advogado e logo depois ministro. Ele sempre conseguia absolutamente tudo com um pouco de manha e só conseguia perder na arte da persuasão para uma pessoa da família, a irmã dele, que no caso sou eu.
Pois bem, nós estávamos em meados de janeiro de 1939. Emma tinha voltado ao seu cargo na escola. E eu? Bom, eu tinha que achar algo para fazer. Então, estava na tentativa de melhorar algumas partes do meu treinamento. Após o episódio com Richard Gardner e seu escudo de percepção totalmente avançado, eu decidi que queria um também. Simples assim. Mas a prática era bem mais difícil do que a teoria. Eu devia estar fazendo algum cálculo errado ou a teoria que estava com defeito? Concluí que a teoria estava com defeito. Logo, voltamos para o tópico irmãos. Liguei para Arthur.
- Garoto, você lembra a matriz dos números de Petersburg? – eu perguntei assim que ele atendeu.
- Boa noite para você também, maninha. – ele resmungou. – Tente o código binário, sempre funciona.
- Acho que desta vez não. Talvez se eu reverter os polos... – pensei comigo mesma.
- Você só vai causar uma grande explosão com isso. – ele riu. – Mas, está tentando criar um campo de Petersburg?
- Um escudo de percepção. São as mesmas matrizes, por isso a confusão. – expliquei e ele soltou uma risada incrédula.
- Um escudo? Certo. – ele respondeu em ironia.
- Eu já vi um cara fazer. – informei.
- Então por que não pergunta ao seu “cara” como ele conseguiu? – meu irmão indagou ainda desconfiado.
- Garoto, você vai fazer os cálculos ou não? – perguntei ultrajada. Ele soltou um “hmm" parecendo pensar na resposta.
- Tudo bem, se me prometer estar aqui no aniversário da Celly. – ele deu sua proposta.
- A criança vai fazer aniversário de novo?! – eu suspirei.
- Sim, irmã. Porque nós seres humanos fazemos aniversário todos os anos. – ele debochou.
- Eu acho ridícula essa sua atitude. – comentei e pude ter certeza que ele estava sorrindo.
- Tudo bem, vou fazer os cálculos depois do jantar e depois te mando umas mensagens. – ele respondeu por fim.
- Já está na hora do jantar aí? – questionei.
- Nem todo mundo viaja até a idade das pedras. – ele respondeu em um suspiro. – Alguns de nós gostam de ficar na sua época de origem. Estou bem aqui, obrigado!
- Não estou na idade das pedras, estou em 1939 e... – eu estava prestes a terminar a frase, mas notei em meio as feiras livres algo que chamou a minha atenção. – Arthur, me mande os cálculos depois. Eu tenho que desligar.
E então eu desliguei, antes mesmo de ouvir alguma resposta do meu irmão. Pois agora nós mudamos o tópico outra vez, para mentiras. Há alguns metros de mim, estava a maior mentirosa que eu já havia conhecido em meus trabalhos como detetive. Ela não devia estar dando aulas?
Emma falava com o mercador, já então conhecido como Sr. Smith, pai da pequena e falecida Caitlyn. A conversa dessa vez não pude ouvir, pois estava um pouco mais distante dos dois e a função de camuflagem do meu dispositivo ainda estava alterada graças ao nosso maior inimigo, Richard Gardner. Emma parecia preocupada, falava incessantemente e de maneira suplicante, como se estivesse se desculpando. O mercador negava com a cabeça a cada palavra de Emma, falava duas ou três palavras e depois parava para ouvir. E Emma continuava suas desculpas.
Quando era mais nova, meus irmãos e eu costumávamos brincar de leitura labial. Por incrível que possa parecer, eu sempre fui péssima nesse tipo de jogo. Lauriana era quem tinha mais habilidade e descobria sempre a palavra ou a frase proferida por nós. Mas graças a tantas tentativas de aperfeiçoamento na brincadeira, eu consegui captar algumas palavras na conversa de Emma e do mercador. Uma delas era sem dúvida “Ela". Esta foi repetida várias e várias vezes, portanto não tinha como confundir. A segunda palavra foi proferida apenas duas vezes, uma por Emma e outra pelo mercador. Vocês podem até achar que eu captei a palavra errada, ou que estava ficando paranoica demais para poder raciocinar, mas a palavra saiu tão nítida que eu podia jurar que não estava ficando louca. Os dois, tanto o mercador quanto Emma tinham mencionado a palavra “Scarabel”.
Depois de alguns minutos, Emma seguiu adiante para o final da rua, na mesma direção em que tinha seguido da primeira vez que a vi. Ela entrou no vilarejo sem saída e foi em direção a porta da última casa. A rua estava vazia, me joguei para uma das entradas atrás de uma coluna. Perto o suficiente para poder ouvir, distante o suficiente para não ser notada. Após algumas batidas na porta, uma mulher atendeu Emma. Levei alguns instantes para reconhecer a voz, mas logo percebi que se tratava de “Tottie", amiga de Emma e esposa do mercador.
- O que há de errado dessa vez? – eu ouvi Emma sussurrar.
- Eles estão por aqui, você sabe. – Tottie disse em resposta.
- Então saía, vá para outro lugar. – Emma respondeu cautelosa.
- Você sabe que eu não posso fazer isso. – a mulher respondeu a contragosto.
- Eu não estou nem aí, pegue George e saía. – Emma insistia.
- Emma, querida. – Tottie disse em um tom terno. O que me fez querer vomitar. – Eu não posso ir embora e deixá-la.
- Charlotte! – Emma esbravejou. – Eu estou bem, vou ficar bem. Eu sei me virar sozinha.
- Emma, supondo que eu vá. – ela ponderou. – Vou levar Anne May comigo.
Me inclinei um pouco para frente, para poder espiar. Emma encarava Tottie seriamente, os olhos... Não sei, os olhos eram indefiníveis.
- O que você propõe então? – Emma perguntou. Estava claro que ficar longe de Anne May era fora de questão para ela.
Tottie sussurrou algo que eu não pude ouvir, então Emma balançou a cabeça negativamente. O rosto da mulher enrijeceu e suas sobrancelhas arquearam-se.
- Você está pondo a vida do meu filho em risco por um romance? – ela perguntou ultrajada.
- Não é um romance, você não vai entender. – Emma respondeu em cautela. – Eu confio nela, confio que ela pode me ajudar.
- Que ela pode te ajudar? – a mulher riu em escárnio. – Criança de Deus, como ela poderia te ajudar?
- Os sonetos. – Emma declarou.
- Ah certo, a profecia sagrada. – Tottie debochou.
- Você não vai entender. – Emma repetiu.
- Claro, como eu poderia entender. – a amiga retrucou ressentida.
- Isso não é por causa dela, é? – Emma perguntou desconfiada.
Tottie encarou Emma por longos minutos e então caiu no choro. Chorou feito criança, como se estivesse abalada demais por uma simples pergunta. Emma, como uma boa amiga, foi ampara-la.
- Eu só não quero perder mais alguém. – ela soluçava. – Eles me tiraram a minha menininha.
Emma a abraçou forte e franziu o cenho, era visível a dor que sentia por Caitlyn. Mas tinha algo mais, era sempre os olhos que a denunciavam. Ela encarava o chão fixamente, então franziu o cenho de novo e por alguns instantes previ o que ia acontecer. Eu me lancei para trás no mesmo instante em que ela ergueu a cabeça em minha direção. Meu coração estava mais do que acelerado, imaginei que ela poderia ter me visto. Então lembrei do episódio, ali mesmo naquele beco sem saída. Quando Emma me enxergara mesmo eu estando invisível, metaforicamente em ambos os casos. Emma de alguma forma podia sentir a minha presença. A grande pergunta era: Como?
- Tottie... – Emma disse em um tom terno. – Por que não vamos conversar lá dentro?
A amiga assentiu com um longo suspiro, então subiu o degrau da porta enquanto falava meia dúzia de palavras que eu não pude ouvir. Emma se demorou mais ali, do lado de fora, olhando fixamente para o final do beco. Me recolhi ao fundo da coluna por instinto. Não era possível ela sentir a minha presença.
Logo depois desse episódio, voltei para a pensão. Minha cabeça estava lotada de hipóteses e pensamentos que não faziam sentido. Charlotte. Eu já tinha escutado esse nome em algum lugar. Ela tinha dito que eles a tinham tirado sua menininha. Eles quem exatamente? Nazistas? Não faria tanto sentido assim. Meu cérebro parecia querer encaixar algo ali, uma peça que faltava. Uma única peça.
Apesar de eu ser inteligente, esse tipo de informação nunca ficava em minha cabeça. Não era exatamente ligada a nomes, datas de aniversário ou qualquer coisa que não fosse estritamente necessária para a missão. Mas eu conhecia alguém que podia ressuscitar qualquer uma dessas informações em questão de segundos. Então, voltamos para o tópico irmãos.
- Laurinha?! – eu disse assim que ela atendeu ao meu chamado.
Fazia mais ou menos uma semana que não falava com minha irmã por chamadas visuais. Todas as vezes em que relatei algo, foram por mensagens de texto ou por rápidas comunicações de voz. Afinal, eu não tinha muito o que relatar. Lauriana tinha a expressão séria e concentrada, como se esperasse lentamente para absorver cada palavra que saísse da minha boca. As vezes eu tinha a impressão que ela fazia isso apenas para no final dizer: “Eu avisei que iria dar merda".
- O que aconteceu? – minha irmã perguntou.
Ela não estava sozinha, muito menos estava em sua sala. Parecia estar no laboratório, junto com ela estava Marissa. Fazia tempo que eu não falava com Marissa também.
- Por onde eu começo? Bom, Emma está mentindo. – eu relatei.
- Jura?! – Lauriana retrucou em deboche.
- Emma tem algum envolvimento com os Scarabel. – eu disse, mais como uma nota mental do que como uma declaração.
- Isso é fato. – dessa vez fora Marissa quem me respondeu. – Mas... tem mais alguma coisa, não é?
- A mãe da menina Caitlyn. Emma a chama de Tottie. – eu respondi. – Emma estava tendo uma discussão com essa mulher. Antes disso, estava tendo uma discussão com o marido dessa mulher. Eles mencionaram Scarabel.
As duas me encararam. Estavam quietas, as duas pensativas. As duas inteligentes demais para deduzir o que eu estava deduzindo.
- Gina... – Marissa foi a que teve coragem de perguntar. – Você está deduzindo que...
- Tottie. – Lauriana respondeu antes que Marissa pudesse terminar. – Você disse que Emma a chama de Tottie. Certo?
- Parece um apelido de infância. – eu respondi seguindo o mesmo raciocínio.
- Espera. Vocês estão se ouvindo? – Marissa perguntou aturdida, voltando o aparelho para si.
- É um apelido para Charlotte. – eu concluí e minha irmã puxou o aparelho de volta para me encarar, ela parecia ter ganhado na loteria. – Pensei que você me daria uma ideia de onde eu poderia ter ouvido esse nome. Mas pela sua cara, eu tenho certeza do porque é tão familiar.
- A irmã perdida de Christina Scarabel. – Lauriana respondeu triunfante. – É bom demais para ser verdade.
- Mas o que Emma tem com a irmã perdida de Scarabel? – Marissa perguntou fazendo minha irmã cair do pedestal. – É apenas um nome, uma pista. Não um fato.
Eu odiava quando Marissa era a dona da razão. Enquanto Lauriana e eu éramos as ideias, ela era o nosso lado racional.
- O acrônimo. – Lauriana respondeu. – Scarabel é uma das palavras.
- Gardner disse que eram nomes ligados a Emma, cada um deles. – eu concluí. – Você não teve sorte, não é?
- Não. Mas temos uma nova pista, posso puxar alguns arquivos diante do nome Charlotte Scarabel. – ela dizia de maneira atropelada, empolgada demais com a ideia. – Eu posso fazer isso, posso achar alguma coisa.
- É claro que você pode. – concordei com uma piscada e ela sorriu. Lauriana adorava receber elogios.
- Bom, então estamos quase lá. – Marissa afirmou com um suspiro. – Vamos pegar firme nesse acrônimo e tentar contatar Richard Gardner, pela milionésima vez.
Eu poderia dizer que sim, estávamos quase lá. Poderia dizer que em menos de uma semana nosso caso estaria resolvido, que Marissa conseguiu contatar Richard Gardner e que as pistas do acrônimo que minha irmã desvendou foram benéficas para mim. Poderia dizer essas e mais um milhão de mentiras, mas iam ser apenas isso. Mentiras e mais mentiras.
O fantasma da voz de Nora Caliman ressoava em minha mente, desde que minha mãe se foi, eu escuto a mesma frase. Não seja uma mentirosa, Regina. Mentir é pecado. Não seja uma mentirosa. Eu não era uma mentirosa, odiava mentiras. Mas, quando é necessário, existem outros meios de cometer o pecado da mentira. E se tinha uma coisa que eu sabia fazer e fazia muito bem, era ocultar a verdade. Nora não poderia me chamar de mentirosa. Eu era astuta com as palavras, uma manipuladora de meias verdades. Mas nunca mentirosa.
Sabendo isso querido leitor, imaginando que minha atitude ao visitar Emma no quarto naquela tarde foi perguntar se sua aula fora proveitosa, não me veja como uma mentirosa. Me veja apenas como uma astuta manipuladora de meias verdades. Emma simplesmente sorriu, um sorriso perfeito de quem também sabia manipular verdades. E respondeu que tivera um dia difícil. Uma espécie de acidez tomou conta do meu estômago, eu me sentia traída, magoada e com raiva.
Eu poderia ter continuado a fingir, poderia ter deixado para lá. Mas as palavras saíram da minha boca involuntariamente:
- E como está sua amiga, Tottie?
Emma no mesmo momento se virou para mim, inclinando a cabeça para o lado, gesto que eu não sabia definir se era curiosidade ou incredulidade. Ela teimou em me analisar pelos segundos que se passaram. E então ergueu a sobrancelha levemente. Imaginei que ela iria gritar, me acusar de espionagem ou qualquer outra reação de acordo com a incredulidade dela. Mas Emma simplesmente expressou sua incredulidade dessa forma:
- O que é isso? Ciúmes?
- Como é que é? – retruquei, mais enraivecida do que antes. – Você é inacreditável, Emma Swan. Isso tudo só pode estar sendo uma piada para você. E eu, uma grande otária.
- Certo... – Emma suspirou, mantendo totalmente o controle das palavras. – Por que não se senta?
Ela estava ponderando, refletindo, pensando e escolhendo cuidadosamente as palavras que iria usar. Estava se preparando para me manipular. E eu estava com raiva, estava cansada e com raiva de mim mesma por estar com raiva. Eu não devia me importar.
- Qual a sua mentira dessa vez? – eu perguntei, me sentando na cama.
- Eu não vou mentir para você.
- Mas também não vai contar a verdade. – retruquei.
Emma me encarou, os olhos fixos nos meus, como se esperasse algo que eu nunca poderia lhe dar.
- Tottie... É uma amiga de infância. Eu a conheci quando era apenas uma garotinha. A família de Tottie cuidou de mim, me deu um lar. – ela dizia, enquanto olhava fixamente nos meus olhos.
Ela podia não estar mentindo, mas eu sabia que em alguma parte da história, ela ocultava uma verdade.
- Scarabel. – eu respondi. – A família que você mencionou é a família de Charlotte Scarabel.
- Sim. – ela respondeu, breve e sem nenhuma ponderação. – Charlotte é a irmã mais nova de Christina. A família Scarabel era uma família judia, parentes próximos. Judy e Chai Scarabel prometeram aos meus pais que sempre cuidariam de mim, quando os dois se foram, Christina manteve a promessa. E depois que Christina se foi... Charlotte fez o favor de seguir a tradição da família.
- E por que você precisa de tanta proteção? – indaguei, dessa vez Emma pareceu ponderar.
- O meu pai fez algumas coisas. – ela respondeu e então respirou fundo. – Coisas que deixaram algumas pessoas furiosas, outras incrédulas. Mas, de todas as formas, as ações dele se voltam para mim.
- O grupo de freiras esquisitas onde encontramos Richard Gardner...
- Aletheia. – Emma respondeu. – É um grupo um pouco peculiar.
- Aletheia... Uma palavra grega, eu lembro dessa expressão. Meu irmão adora o significado, o que faz sentido para quem sabe qual o cargo dele no ministério.
- O não-oculto, ou aquilo que não se esconde. – Emma deu continuidade.
- Em outras palavras, a verdade verdadeira. – eu concluí e Emma assentiu. – Mas o que eles são? No sentido literal da palavra. Algum grupo religioso?
Ela apenas suspirou, ficou muda e encarou os pés. Era evidente que eu queria mais, queria explicações mesmo que fossem apenas meias verdades. Por hora, eu não estava exigindo a verdade verdadeira, me contentava em aceitar mentiras. Para a minha surpresa, a resposta dela me pareceu muito genuína.
- Eles são uma organização, uma religião própria. Como uma seita, diferente de muitas outras religiões. As raízes são muito antigas, existem há milhares de anos. E o propósito deles sempre foi separar o místico do científico. A base deles é que a ciência e a religião não se misturam, são opostas. Já a crença da minha família se opõe a tudo o que Aletheia acredita. A religião e a ciência se completam.
- O seu pai era um judeu alquimista. – eu respondi, após longos segundos de silêncio. Emma apenas assentiu. – O que foi que o seu pai fez?
- O meu pai fez muitas coisas. – ela ocultou a verdade outra vez. – Você lembra sobre o pacto da verdade?
Eu achei cruel a pergunta, mas assenti. Nós tínhamos feito um pacto na noite de Natal, o que Emma chamou de pacto da verdade. Ela me prometeu esclarecer todas as coisas assim que recuperássemos a jóia, me prometeu a verdade genuína em troca da minha paciência. E eu prometi esperar. Ela estava me cobrando o pacto agora, eu achei injusto da parte dela. Mas se tem algo que aprendi ao longo da vida é que nós, seres humanos, temos nossas razões genuínas para ocultarmos nossas verdades genuínas. E se o fato de ela me cobrar a promessa era injusto, não cumprir com a promessa era mais injusto ainda.
Minha decisão estava tomada, eu tinha que esperar. Emma pareceu satisfeita com essa declaração, mas como nem tudo na vida é um grande mar de rosas perfumadas, nós estávamos muito longe do felizes para sempre. Lauriana não gostou nem um pouco da minha declaração, muito menos do pacto da verdade.
Aqui está uma verdade genuína: eu sempre admirei o desempenho e a dedicação de minha irmã mais nova. Desde criança, Lauriana sempre fora decidida, determinada e dedicada em tudo o que fazia. Depois da morte de Celine, minha mãe Nora, se dedicou mais do que devia ao seu cargo no ministério. Arthur sempre se inspirou em Nora, nos estudos e na carreira, decidiu seguir os passos dela. Já Lauriana foi procurar em mim, sua irmã mais puxa saco, a sua inspiração. Eu dizia a ela que manter os laços e seguir os exemplos de Agatha e Rebecca, trariam mais benefícios. Mas se tem uma coisa que os Caliman tem em comum, é a teimosia. O que nós chamamos humildemente de razão e convicção. Depois da morte de Nora, cada um seguiu seu caminho. Agatha tinha sua família, Rebecca também tinha sua família, Arthur já tinha se formado e estava conhecendo sua futura esposa com quem iria constituir sua família. E eu e Lauriana? Bom, nós tínhamos uma à outra. Nunca fui do tipo apegada demais à família, Nora criara seus filhos para o mundo. A única coisa que me importava era Lauriana, que seria sempre a minha caçula.
Pela razão e convicção de Lauriana, ela sempre dava um jeito em tudo, mesmo quando parecia impossível. Era só dar as palavras certas, os dados certos nas mãos dela, e só esperar resultados. Então, com o lance do acrônimo, não poderia ter sido diferente.
Eu esperei algum tempo para poder ligar para minha irmã outra vez, já tinha ajudado Emma e a senhora Rosewood com a pensão, já tínhamos feito nossas refeições e nos preparado para dormir. Eu estava em meu quarto, já me preparando de todas as formas para a relutância e a teimosia de minha irmã. Eu não queria chatear Lauriana, mas era algo necessário.
- Você não vai acreditar! – ela atendeu ao chamado de imediato, com sua empolgação típica de uma criança que conseguira o doce favorito. – Digo, vai acreditar porque você conhece a irmã incrível que você tem!
Eu não queria cortar a empolgação de Laura, muito menos dizer a ela que o que quer que ela tenha conseguido teria que esperar. Minha irmã odiava arquivar suas descobertas, odiava mais ainda não poder compartilhar elas comigo. Explicar tudo para ela seria uma missão impossível.
- Laurinha... – chamei sua atenção e ela esperou, atenta. – O que quer que tenha achado, nós vamos arquivar.
Ela esperou, atenta ainda, olhando para mim como se estivesse calculando algo. E então sorriu, como se fosse uma brincadeira da minha parte.
- Arquivar? – ela perguntou erguendo as sobrancelhas de um jeito sarcástico. – Como assim arquivar?
O jeito como ela arqueava as sobrancelhas e o sarcasmo em sua voz, fazia aflorar os traços que ela herdara de Nora Caliman, sendo assim mais parecida comigo.
Então expliquei para Lauriana tudo o que eu sabia, tudo o que ela precisava saber. E ela ouvia tudo atentamente, com um misto de confusão e incredulidade.
- Um pacto?! – ela repetiu. – Está dizendo que vou arquivar as minhas fichas por um pacto com a pessoa investigada?!
- Vamos lá, não é tão incomum assim. – eu constatei. – E não vai ser por muito tempo, só até eu conseguir a jóia. Nosso foco é a jóia, lembra?
Minha irmã me encarou, com a expressão fechada. Cara de poucos amigos. Eu só via essa expressão uma vez ao dia, quando Lauriana estava com muita fome e não tinha batatinhas por perto. Mas essa expressão zangada não era direcionada a falta de alimentos, era direcionada a mim. E aquilo me deixou inquieta. Ela parecia outra pessoa.
- Eu não vou arquivar. – ela respondeu, ríspida.
- Laurinha...
- Eu disse não! Eu não vou arquivar. Ouviu bem? – ela contrariou, sua expressão se tornando mais dura.
Coisa que não combinava nada com a minha irmã.
- Só estou pedindo um pouco de tempo... – eu implorei.
- Pro inferno com o seu pacto e a sua paciência com Emma. – minha irmã esbravejou, de um jeito que nunca tinha visto antes. – Essa garota manipula você, se faz de coitadinha, te engana. Mente na cara de pau! E o que você faz? Dá a ela mais tempo para mentir pra você?
- Lauriana, não é assim... – eu tentei ponderar.
- Se você soubesse o que eu tenho aqui... – ela ergueu uma pasta para a frente da câmera. – Se soubesse o tipo se informações, nomes e pessoas. Você não estaria pedindo algo assim.
- Não tente atiçar a minha curiosidade, isso não vai funcionar. – eu a avisei.
- Você não pode fazer isso. É o seu trabalho...
- O meu trabalho é recuperar a jóia, não investigar a vida de Emma Swan. – aleguei, o que a fez ficar ainda mais furiosa.
- Deve ter alguma coisa que impeça você de fazer um pedido desses. Não me faça recorrer à lei, Regina. – ela reclamou.
- Artigo 6, cláusula II do livro de Diretrizes e Bases da Investigação Atemporal: “Cabe ao profissional investigador o direito de arquivar processos e/ou pistas das quais sofrem por alterações nas medidas provisórias, sendo elas decorrentes ou póstumas de uma investigação em aberto.” – eu citei a cláusula, o que fez o ódio de minha irmã aumentar.
- Você foi buscar cola com o Arthur antes de me ligar? – ela debochou.
- Sim, eu fui. – respondi, tentando manter a paciência.
Minha irmã me encarou, a expressão ainda em um misto de fúria e incredulidade. Ela suspirou, coçou as sobrancelhas e então deu uma leve risadinha.
- Eu descobri todos os nomes do acrônimo. Todos são de famílias judias e... – ela explicou, mas foi interrompida por mim.
- Eu não ligo. – respondi. – O que você tiver aí, vai ser arquivado até a missão no banco.
- Eu vou me casar. – ela soltou.
Eu encarei Lauriana, agora eu estava surpresa e incrédula.
- August? – perguntei aturdida.
- Sim, com o August. – ela respondeu, breve.
- Você não pode fazer isso. – protestei.
- Eu posso fazer o quê eu quiser, sou adulta. – ela me encarava, com a cara trancada.
- Você escondeu isso de mim. – eu disse, evidentemente magoada. – Você nunca esconde nada de mim.
Minha irmã me encarou, bem nos olhos, o que fez a semelhança dela com Celine ser gritante. Isso dificultou ainda mais a conversa.
- Parece que estamos no mesmo patamar então. – ela retrucou. – Desde quando me esconde que está apaixonada por Emma Swan?
Eu pisquei, o ar em meus pulmões pareciam ter fugido de lá. Eu fiquei sem palavras. Eu queria protestar como sempre fazia, dizer que não estava apaixonada por Emma. Queria rir, como se fosse uma piada infantil e implicância boba entre irmãs. Mas eu sabia que não era isso, sabia que ela estava falando sério. E Lauriana era a pessoa que mais me conhecia depois de mim mesma. Eu queria realmente protestar e dizer que ela estava enganada. Mas eu não podia, não tinha como mentir para minha irmã. E ela sabia muito bem disso.
- Eu sinto muito. – eu respondi. – A única coisa que eu posso dizer é sinto muito. Eu sei que você não está de acordo, sei que as informações podem transformar esse caso em um grande caso. Eu sei os riscos que estou correndo e sei que se aprofundar nisso traz benefícios para a agência, para mim e para você. Sei que um caso desses com o seu nome no relatório de entrega é uma ótima oportunidade de crescimento para você. Mas nem tudo é carreira. Eu não posso sacrificar Emma por uma coisa dessas. Então, eu sinto muito.
- É a sua última palavra? – minha irmã perguntou e eu assenti, breve e cansada de discutir. – Certo, nos informe quando tiver pistas relevantes para o andamento da missão, detetive Mills.
- Como quiser, Caliman. – respondi no mesmo tom formal que ela usou comigo, como se fosse uma atendente de telemarketing cansada no final do expediente.
Sem mais uma palavra de protesto ou tentativa de me persuadir, ou qualquer outra forma de dizer que estava devidamente chateada e enraivecida, minha irmã finalizou a chamada. Nota ao leitor: Após esse dia, Lauriana sempre passava as minhas ligações, para Marissa ou para qualquer outra pessoa disponível. Eu devia sentir arrependimento ou culpa, mas nós duas estávamos erradas. E eu não seria a primeira a dar o braço a torcer. Lauriana muito menos queria ter o privilégio de dizer que estava errada. Hoje em dia não me orgulho daquilo, sinto que perdemos tempos preciosos, queria poder voltar atrás e dar o braço a torcer no primeiro momento. Mas eu não me arrependo de ter tentando proteger Emma, hoje entendo ainda mais o porquê de ter sido necessário. Apenas me arrependo de ter permanecido tanto tempo sem falar com a minha irmã, quando ainda tinha a minha irmã para poder brigar e reclamar. Pois hoje, alguns anos depois daquela missão ter finalizado, uma das coisas que mais me dói no peito é a saudade de Lauriana. Ainda assim, apesar de toda a confusão que as mentiras e os irmãos possam nos causar, eu continuo achando que os dois são realmente necessários.
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A Garota Impossível
FantascienzaRegina é uma viajante, não uma viajante qualquer. É a mulher que visitou eras, monarquias e ditaduras, presenciou guerras, grandes conflitos e quedas de impérios. A grande espiã de um futuro distante, acostumada a lidar e investigar o terror e fatos...