ATO II - SOLFIERI

6 0 0
                                    

Eu sempre fui de resolver problemas, mas isso não era minha profissão e eu não me tornei conhecida por isso do dia pra noite. Isso tem muito mais haver com o tipo de companhia que eu mantinha.

Nova York - 1998


Solfieri foi liberado na delegacia como se estivesse saindo de minha própria memória vidas atrás quando o vi pela última vez. Em contraste ali com as pessoas bêbadas sujas e degeneradas, gritando e vulgares, ele emergiu da imundice. Alto, pálido, olhos negros e perfurantes, cabelo desgrenhado e ainda assim impecável, sobrancelhas marcantes e expressivas, minha parte favorita do rosto dele. Vestido, ao que parecia ser o resto de um traje white tie, jaqueta perdida. Ele andou até mim, petulante para um olhar destreinado, derrotado para quem o conhece. Eu olhei sua camisa branca, botões soltos na gola e sangue respingado, mas não era dele. Coloquei a mão em seu queixo e virei o rosto para ver melhor o inchaço e o roxo das pancadas que levou.

– Seu lindo rosto... – eu disse e fiz "Tsc" com a boca em desdém. Ele sabia o quanto eu achava desprezível brigas de bar, bebidas e vagabundice. Ele não disse nada, apenas abaixou a cabeça.

O oficial expôs os pertences dele em uma bandeja, confiscados quando ele foi detido. Ele direcionou a bandeja para Solfieri, mas quem pegou fui eu. Analisei peça por peça. A gravata borboleta, bastante dinheiro em um clipe de ouro, o mesmo da época que nós andávamos juntos. Chaves de algum carro esporte. Eu nunca gostei de carros e nunca tive um, então não sei qual. Quando levantei os pertences e coloquei no bolso do meu casaco, me deparei com algo familiar, uma corrente com um anel de ouro pendurado como pingente. Eu olhei para Solfieri, para tentar ler sua expressão. Levantei a corrente a fim de expô-la entre eu e ele. A aliança dourada balançando entre nós. – Ainda? – eu disse.

– Eu gosto do visual. – ele disse sem se importar o suficiente para me olhar nos olhos, como quem quer justificar a insignificância de um objeto que é tão irrelevantw que por mais peso que ele tenha em seu significado pra mim, para ele não quis dizer nada, a ponto que nem jogar fora valia a pena.

– Entendi. – eu disse e coloquei no bolso junto com as outras coisas.

Nessa época eu trabalhava em shows e eventos. Eu adorava a comoção antes do show e adorava o show de luzes e o frenesi das pessoas do outro lado, na platéia. Ficar na platéia nunca me animou, já os bastidores, me passava uma adrenalina sem igual. Depois de tanto tempo, pouca coisa me evocava emoção e essa era uma delas. Eu estava trabalhando em uma turnê de uma banda na época, e estávamos em um intervalo de alguns dias, a turnê se encerra aqui em Nova York, e depois partiriamos para a Europa. Eu estava ansiosa para ir para europa, pois queria muito visitar Copenhagen e acreditava, tola que sou, que eu teria tempo para isso. Vim com Solfieri até o hotel, abri a porta, ele entrou. Eu tirei meu casaco, revelando estar com a camisa do meu pijama por baixo, troquei de calça e ele entrou no banheiro e tomou banho. Eu deitei em apenas um lado da cama deixando espaço para ele, sem saber se ele teria coragem de compartilhar comigo, mas eu demonstrar algum sentimento, ia dizer que ele ganhou e no momento eu ainda estava com um pouco de vantagem, pois quem me ligou pedindo resgate foi ele. Quem quebrou o silêncio foi ele. Então ele saiu do chuveiro, e com o roupão oferecido pelo próprio hotel ele veio e se deitou ao meu lado. Ele era pesado e eu senti o colchão afundar consideravelmente com o peso dele. Eu suspirei irritada. Dormi algumas horas e acordei com o barulho dele no banheiro, escovando os dentes.

– Você está usando minha escova? – eu perguntei sinceramente chocada. Ele suspirou irritado, assim como eu fazia...também um hábito dele.

– Eu te compro outra. – ele disse. Então foi até meu casaco pendurado no cabide e revistou os bolsos.

– Vai pra onde sem camisa? – eu disse ao notar que ele estava apenas com a calça do smoking.

– Verdade. – ele disse, então tirou meu casaco do cabide e o vestiu. Eu levantei em um pulo. – Você não ousa.

– Eu já volto. – ele disse e saiu. O maldito saiu com meu casaco, meu casaco favorito. Ele nunca foi muito de respeitar, mas após boa parte de um século, voltar do nada e me tratar como a familiar dele...

Eu desisti de ficar com raiva, ele não valia a pena, então resolvi seguir com meu dia e tomar um banho. Continuar sem meu casaco, sabe-se lá se eu ia ver meu querido casado novamente. Sabe-se lá se Solfieri ia voltar ou não. Durante o banho então ouvi a porta do meu quarto se abrir, eu sabia que não era a camareira pois sempre faço questão de por a placa de não perturbe do lado de fora. Pelos passos sabia que era Solfieri, ele mexeu no guarda-roupas, provavelmente devolvendo meu casaco e então entrou no banheiro e jogou uma sacola de mercado por cima do box. Caiu no chão e eu vi que dentro dela tinha uma escova de dentes nova, igual a minha. Eu terminei meu banho logo em seguida e saí do banheiro para encontrar Solfieri sentado aos pés da cama amarrando os sapatos, sacolas ao lado, ele havia comprado roupas novas. A corrente com a aliança balançando de seu pescoço me espetou um pouco no peito. Ele realmente não dava a mínima, usava como se fosse nada, sem peso algum. Eu respirei fundo e fui até onde estavam minhas roupas separadas para me trocar, e fui me vestir. Solfieri terminou de se arrumar, mas não se mexeu. Algo me dizia que ele estava a me observar, então virei para trás e ele estava lendo um recibo. Eu me irritei.

– Se você já terminou com seu circo, pode ir embora. – eu disse.

– Eu gosto de você com cabelos curtos. – ele disse ao meu corte chanel que já havia crescido até o ombro.

– É? Foda-se. – eu disse. Ele sorriu e eu fiquei mais irritada ainda. Ele gostava de me irritar, era uma das coisas que ele fazia para perfurar minha armadura, uma espetada de cada vez. – Tá rindo de que? – eu disse.

– Da familiaridade, você não mudou muito.

– Eu mudei, acredite. – eu disse.

– Da ultima vez que a gente se viu...

– Você me usou para atrair outra pessoa, e me trocou por ela.

– Sim.

– E cade ela agora?

– Se foi.

– E eu to aqui...né?

– Sim. – ele disse e sorriu. – Eu pedi desculpas.

– E eu não perdoei. – eu disse relembrando nossa última conversa. Solfieri não sorriu mais, e eu esperei com toda força que ele estivesse sentindo o mesmo que eu, mas conhecendo ele, ele não estava, ele só estava buscando palavras para melhor me usar.

– Como conseguiu meu contato?

– Augustus. – ele disse. – Encontrei com ele e Gennaro por acaso na Cidade do México e eles me disseram que você estava aqui e me deram seu contato.

– Porque fizeram essa cagada? – eu disse. – Eles sabem muito bem que a gente debandou.

– Eles me passaram o contato do Yohann também, da Dulci...de todo grupo.

– Eu duvido que Augustus tenha feito isso, tenha permitido que Gennaro o fizesse.

– Não importa mais, eu me encrenquei e só pensei em uma pessoa que estivesse em Nova York que pudesse me ajudar. – Eu terminei de calçar minhas botas, me levantei e parei na frente dele ainda sentado na cama. Passei meus dedos pela cabeça dele, perdendo minha mão em seus cachos negros, seu cabelo não parecia ser longo e ele cuidava bem dele, era sempre bem aparado e perfeito, eu adorava arruinar essa ilusão de controle que ele conseguia passar. Ele olhou pra cima, seguro de si. Com a outra mão peguei no colar e fui tira-lo por cima de sua cabeça. Ele me impediu calmamente. Por fora, eram duas pessoas trocando carícias, mas eu e ele sabíamos que aquilo era uma briga.

– Já é tempo que você destrua isso. – eu disse.

– Onde está o seu? – ele perguntou, colocando o dele seguramente dentro de sua camisa.

– Perdido, no fundo de alguma gaveta. – Eu joguei num rio em alguma cidade fétida da europa enquanto gritava de raiva.

– Destrói o seu, o meu é meu e eu faço o que eu quero. – eu não sabia como rebater então fiquei calada.

– Eu não quero você aqui quando eu voltar. – eu disse antes de sair. 

A BaronesaOnde histórias criam vida. Descubra agora