Sentada em sua cama, de frente ao espelho, observa seus cabelos grisalhos envelhecidos, com um vestido branco digno de uma dama, de caimento ideal para alguém de sua classe, leva em seu trêmulo braço esquerdo uma grande, porém leve cicatriz que facilmente se confunde com as rugas em seu corpo, com uma escova de cabelo perolada de cerdas longas e firmes, acaricia suas alvas, experientes madeixas de forma lenta e continua. Um pequeno e luminoso feixe de luz solar cruza o quarto iluminando parcialmente seu rosto, se originando por uma fresta da alta cortina dupla face, que não se conseguia alcançar com as mãos, devido a sua altura, que cobria parcialmente uma janela redonda de igual tamanho, localizada na parte mais alta da parede do quarto.
O processo quase hipnótico em que está é interrompido, ao ouvir uma leve batida em sua porta e seu nome ser chamado do outro lado. Organiza o cabelo de forma que esconda a cicatriz que toma todo o lado esquerdo de seu rosto, que nem as rugas, dessa vez, são capazes de esconder, se prepara antes de comunicar a quem esta chamando que poderia entrar. Quando uma forte luz invade o quarto e ofusca a sua visão, fazendo que ela contraia os olhos para tentar enxergar mais do que sua visão deteriorada permite, abaixa a cabeça ao mesmo tempo em que luta para manter sua parte esquerda do rosto encoberta. Pragueja se quem fizera tal coisa, não havia recebido ao menos a educação familiar básica.
– Maria, como a você está hoje? – Pergunta a moça baixa, com aproximadamente 1,55 de altura, com um sorriso tão avantajado quanto seu corpo, enquanto caminha em sua direção.
– Primeiramente, bom dia!... É o seguinte. Eu aceito que você ponha, se quiser demonstrar que você tem um pouquinho de educação, “senhora” ou até “dona” antes do meu nome, que é bem simples, porém não deixa de ser nobre.
– Bom dia e me desculpe dona Maria. Tá melhor assim?
– Vou ignorar sou tom irônico, pra não gerar mais problemas entre eu e meu filho... Saudade do meu filhão! – Diz enquanto solta um forte suspiro e continua, ignorando completamente a figura corpulenta a sua frente, que usa um jeans surrado e uma longa camisa branca. – É uma pena que ele trabalhe tanto. Também viajar pelo mundo numa multinacional, toma bastante tempo mesmo... Eu o entendo. Agora uma coisa que não compreendo, é uma pessoa da sua classe, andar por aí de “Crocs”, que calçado mais fora de contexto. – Completa ela sorrindo.
– É mais confortável! – Responde Ana com um sorriso de canto de boca, enquanto tenta pegar em seu braço.
Contrariando a sua condição atual, com um reflexo apurado, ela o retrai e a fita dos pés a cabeça, até olhar bem fundo dos seus olhos castanhos, com um olhar de pouco ou nenhum amigo.
– Pra onde acha que vai com essas mãos enormes Ana? Já não basta tentar estragar meu dia quase me deixando cega com essa luz, quase solar, dentro do meu aposento nessa hora da manhã e ainda tenta violar minha privacidade, invadindo meu espaço, tentando tocar meu corpo? Não iria, mas diante dessa afronta, vou ter que falar com meu filho, o seu marido, diga-se de passagem, sobre a sua falta de modos!
– Dona Maria, não precisa! – Diz Ana soltando o ar preso que tenciona seu peito. – Continua. – a senhora esqueceu que venho todos os dias aqui para dar os seus remédios e às vezes trazer suas. – Hesita por uns segundos. – netas.
– Meu filho e suas manias. Tenho a saúde de ferro, não preciso tomar esses remédios e ainda por cima, tem um deles aí nesse meio, que me deixa com mais sono que uma preguiça na Bahia...
– Deitada na rede! – Fala Ana, completando o jargão dela, enquanto revira os olhos com o ar de reprovação. Já tinha se cansado a muito de contrariá-la, sabendo que só a irritaria e dificultaria mais ainda sua presença ali.
– Nossa! Sabe esse ditado também? – Pergunta ela espantada ao ouvir a nora falar as mesmas coisas que ela, abrindo um largo sorriso.
– Mas a senhora sabe que só está bem porque o seu... – Respira fundo Mais uma vez. – filho compra todos esses remédios pra senhora?
– Como são as coisas né? Eles quando mais novos, nós que cuidamos, quando envelhecemos, são eles que tomam as rédeas.
Com um leve sorrido de aceitação Ana a fita mais carinhosamente, enquanto ela percebe o olhar e diz:
– Sei que você quer pegar meu braço, mas, por favor, prefiro que pegue o outro! – Diz ela mostrando uma simpatia e delicadeza, que até o momento, se escondia em algum lugar escuro e profundo dentro de si.
Segurando seu braço direito, ela a questiona o porquê tanta hesitação em relação ao outro braço, enquanto aferia sua pressão sanguínea.
– Até que pra mãos tão fortes, você é bastante delicada, quase não sinto sua mão. – Diz ela tentando fugir da pergunta feita por Ana.
– Tão fortes e saudáveis quanto o seu braço, não acha?
– Minha nora querida, eu sei que está querendo me agradar, inflando minha vaidade. Agradeço muito por isso, mas eu sei o que vejo, sinto, não é nada bonito e saudável. Agora podemos parar de falar dessa coisa aqui e conversar sobre algo mais interessante... Atraente? – Continua ela – como andam as coisas entre você e meu filho, eu sei que a distância pode causar um grande dano ao casamento. Eu não conseguia, se eu ficasse dois dias sem ver o...
– Pronto! – Diz Ana cortando suas lembranças – sua pressão está como de uma garota, me desculpe à pressão da senhora. – Se corrige rapidamente, sob o olhar repressor de Maria. – agora é só tomar seus remédios, pra gente poder abrir essas cortinas, levantar dessa cama e caminhar um pouco, para que o eles possam fazer efeito mais rápido.
Com um leve sorriso no rosto, com uma mistura de orgulho e admiração, gira sua cabeça acompanhando a nora, que a passos pesados, anda em direção à cortina para abri-la, com uma longa e leve vara que buscou rapidamente no corredor. Ao terminar de abrir a cortina, olha para Maria, que se vislumbra com as luzes coloridas, que a janela em forma de vitral reflete.
– Ah! Como eu adoro um arco íris!
Ana a deixa admirar por um tempo aquele reflexo colorido, no tempo de devolver a vara para o corredor e voltar. Chega mais perto, para dizer que era preciso descer para tomar o café da manhã.
– Claro minha nora querida! Pode me fazer o imenso favor de pegar a minha bengala?
Ana cruza lentamente o quarto, com seus Crocs, sobre os risos debochados de Maria, a respeito do seu calçado, pega sua bengala, que está em pé ao lado da porta de entrada do banheiro e a entrega.
– Menina você é tão competente, não sei por que perde seu tempo cuidando de mim ao invés de estar trabalhando na área que se formou.
Com um sorriso tímido, ela concorda com a cabeça, tenta ampará-la, para que ela possa levantar da cama. Ela com um olhar de negação mostra com a cabeça, para que vá para seu outro lado, apoia-la pelo braço indolor. Dá uma leve tapa na cabeça, pelo fato de ter esquecido o detalhe. Ela sorri, e a contorna, puxa levemente seu braço direito, até que ela se coloque completamente de pé. Com o corpo bastante curvado e as pernas trêmulas, ela dá os primeiros passos curtos com muita dificuldade, mas na medida em que as juntas se aquecem, as passadas ficam um pouco mais rápidas e seguras, mas não a ponto de deixar a bengala de lado.
Ao observar que a nora fita constantemente sua bengala, com um olhar curioso, ela começa, enquanto caminha, a detalhar a interessante história de como ela veio parar em suas mãos.
– Sei que é uma história longa, mas até chegarmos ao salão para tomar o meu café da manhã, com esses passos de tartaruga velha que adquiri ao longo do tempo, vai dar pra eu contar e até repetir... – Diz ela sorrindo.
– Cuidado com o degrau senhor...
Ignorando a informação que lhe foi dada a respeito do degrau, com um ar provocativo, passa a perna direita mais lentamente que o habitual e com um controle muscular que negava por completo sua condição anterior, ela passa pelo degrau, uma perna após a outra. Solta um leve sorriso provocativo, e segue a passos curtos contando a sua história com a bengala. Enquanto Ana retorna o sorriso, aceitando a provocação, como se fosse de bom grado.
– Esta linda bengala foi dada ao meu pai, em uma comemoração de gala, por ele ter entregado um condomínio de alto padrão, dentro do prazo que estava no contrato, a um grande empresário europeu do ramo imobiliário. A festa foi linda, eu ainda era uma criança, estava linda, vestida como uma princesa, com um vestido rodado rosa, com direito a anágua e tudo, uma tiara cheia de pedras brilhantes, que daria inveja até as princesas desses contos de fadas. Só não estava mais linda que minha mãe e meu pai, que pareciam uma rainha e um rei. Logo depois que brindaram ao projeto que foi concluído com êxito, o gringo muito branco e de barba avermelhada que não lembro o nome, mas lembro de que falava engraçado, pegou uma caixa preta, retangular e aveludada, laceada com uma tira de cetim vermelha, linda e deu para o meu pai. Quando ele abriu, essa belezura estava lá dentro, parecia que tinha sido feita por encomenda, pois o cheiro de madeira e de verniz havia tomado o ar a nossa volta. Meu pai agradeceu, mas como não conhecia a cultura, achou uma ofensa, mas não declarou, pois achava que ele havia sido chamado de velho. – Homens, não querem envelhecer nunca, bem típico. Pois bem. – O gentil estrangeiro, vendo que meu pai não tinha entendido o significado do presente, rapidamente começou a explicar, com aquela fala enrolada. – Maria ri, e começa a tossir. Rapidamente é amparada por Ana, que dá leves tapinhas nas costas, para ajudar em seu desengasgo.
Fazendo gestos para comunicar que os tapinhas já haviam sido suficientes, continua. – ele explicou a todos, que quando se presenteia alguém com uma bengala, está reconhecendo o valor da experiência que aquela pessoa possui. E completou, que pelo valor da experiência que meu pai possuía, uma bengala seria pouca.
Ana olha perplexa para aquela história, mas não interrompe a mítica narrativa daquela jovem senhora.
– Me encantei por ela desde a primeira vez que a vi, tanto que assim que cheguei a minha casa, pedi ao meu pai que me desse de presente. Como ele gostava de me presentear, não pensou duas vezes... Que saudade que tenho daqueles dois. – Olhe só como ela, mesmo depois de todos esses anos, está linda. Veja as hachuras que tomam ela toda, essa pata de águia no final dela e a cabeça no início, com um tom imponente, parece que deixa quem a usa mais forte, poderosa.
– Eu como não entendo nada disso, só vejo um pedaço de madeira. – Diz Ana com certo desdém.
– Às vezes você me surpreende com tamanha indelicadeza. Eu aqui te contando a minha história, um momento especial pra mim, sobre esse artefato lindo e você resume isso a um simples pedaço de madeira. Ainda bem que a gente chegou, só assim não vou precisar falar mais nada e se precisar falarei com meu pão e meu café, que devem ser mais sensíveis que você.
Colocando a mesa para ela, Ana se retira, mas antes comunica que volta em alguns minutos e se caso precise de algo, basta levantar o braço, que ela virá o mais rápido o possível. Ela irritada com a falta de prestígio com sua história por parte da nora, apenas dá os ombros e volta toda sua atenção para aquele café sensacional. Via admirada, ali em sua frente, uma mesa de madeira, longa, que caberiam fácil por volta de treze pessoas, seu brilho envernizado reflete o fundo de tudo que estava sobre ela – muitas pessoas pensam ser vidro de inicio, mas logo veem que eram só suas mentes lhes pregando uma peça. – Pensa ela, enquanto vê de tudo sobre aquela imensa mesa; leite, café, sucos, pães, queijos, margarina, bolos e geleias. Imagina que nem quando criança, onde seu apetite era voraz, conseguiria comer tudo aquilo, porém, sabia que todas as sobras eram direcionadas para os funcionários. – como meu filho é generoso, puxou o avô até na humanidade. – Comenta baixinho consigo. – por falar em funcionários. – Ela levanta a cabeça, olha discretamente para um lado e para outro. – onde será que eles estão? Ouço vozes, até altas, mas não os vejo. Minha vista hoje deve estar bem ruim ou eles estão muitos atarefados, ou os dois. – Diz ela sorrindo e conclui. – vida de peão não é fácil!
– Concordo plenamente com cada palavra que dessa linda boca o som reverbera, com os lábios carnudos mais lindos que o mundo nos oferecera! – Ressoa uma voz que vem por detrás de sua orelha esquerda.
– Veja se não é o pintor das almas! O velho Amadeu. – Diz Maria enquanto abre um largo sorriso, que oferta para poucos, ainda mais se chegassem sorrateiros daquela forma.
– Ao seu dispor, menina das madeixas que esconde a beleza por detrás de sua beleza.
– Meu querido amigo já não combinamos em não mencionar essa coisa, pois me irrita e muito. – Diz ela com a cortesia que não teve quando Ana tocou no assunto.
– Peço desculpas pelos meus galanteios exacerbados. Todo artista é um romântico por natureza sempre em busca de uma musa inspiradora. – Diz ele fitando seus olhos.
Maria sem jeito, com os olhares maliciosos que caiam sobre ela, leva as mãos ao rosto, busca esconder o seu acanhamento evidenciado pela sua bochecha direita rosada.
– Ninguém me falou que teríamos visitas, se soubesse, teria colocado uma roupa mais apresentável. Mas é tão bom ver rostos conhecidos e agradáveis logo pela manhã.
Amadeu é um senhor de estatura acima da media, de aproximadamente 1,95 metros, bem magro de nariz avantajado, com dentes fartos que quase lhe salta a boca, cabelos grisalhos vivos que cobrem apenas as laterais da cabeça, que deixa evidente uma profunda calvície, na qual tenta, de uma forma frustrada, encobrir com cabelos maiores que saem das laterais. Seus dedos longos e inquietos, quando não estão estalando, estão sempre ensaiando tocar em alguém, mas, no entanto não se permite, pois supõe ser profano demais tocar em alguém sem a devida autorização, porém também nunca pedia. Sempre que questionado sobre suas roupas simples, principalmente por Maria, alega que o artista tinha que ser livre de coisas materiais. E a única coisa de valor que deve possuir, é a sua arte.
– Por mim, ando nu, mas, minha musa, essa sociedade castradora não me permite fazê-lo num âmbito social, somente nos meus aposentos.
– Senhor Amadeu, contenha seus comentários, não quero imaginar o senhor perambulando nu pela cidade, casa ou qualquer lugar que seja. E trate de se vestir quando for retribuir a sua visita. Pois não tenho pretensões em vê-lo em sua forma natural. – Diz ela sorrindo para o velho senhor e continua. – ainda não me disse o que veio fazer aqui em minha humilde residência?
– Vim tomar o café da manhã com a minha diva, mas vejo que você já terminou.
– Realmente, não tenho o hábito de terminar tão rápido, porém hoje acordei com bastante fome, mas esperaria com muito gosto se soubesse de sua visita. Eu costumo comer um pouco mais devagar. Mas pode ficar a vontade, posso lhe fazer companhia enquanto aprecia esse pequeno banquete.
– Banquete?... Claro!
Maria aprecia a forma voraz com que o homem consume o café da manhã. – magro de ruim! Pensa ela.
Ele tem naquela idade, um instinto primitivo que ela havia perdido há muitos anos atrás. Uma fome não só de comida, mas de vida. Consome tudo tão ferozmente, que aquele mastigar trouxe lembranças inicialmente agradáveis e até excitantes.
Ver aqueles dentes rasgando o pão por mais alguns minutos, começou a gerar uma angústia e uma aflição tão grande que não conseguiu segurar por muito tempo, o grito raivoso, fez o seu querido Amadeu, largar o pão sobre a mesa e dar um salto da cadeira. Maria joga tudo que está sobre a mesa no chão, em seguida a vira, com uma força inexplicável. Prontamente e antes que ela o atingisse com algum objeto, Ana já a segura por trás e para impedir seu progresso, imediatamente pega em seu braço esquerdo.
Maria para quase que instantaneamente, volta a sentar e começa a chorar compulsivamente. Enquanto no outro canto da sala, Amadeu treme mais do que o seu habitual, pedindo desculpas por repetidas vezes por algo que possa ter cometido.
– Por favor, tire esse homem daqui! – Ordena Ana.
Ana a deixa de pé encostada na parede, enquanto põe tudo em seu devido lugar e ao mesmo tempo a monitora, para ser mais precisa, caso a crise retorne.
– Pronto. Dona Maria, ele já se foi, a senhora esta me...
– Nunca mais toque no meu braço novamente entendeu? – Diz cerrando os dentes de raiva.
– Dona Maria, fique calma ou terei que ligar para o doutor Luiz.
– Não vejo a necessidade de incomodar meu filho, que está em viagem de negócios, o deixe vir quando tiver de vir, e outra não estou mais tão nervosa assim.
– Tudo bem eu acredito, mas por via das duvidas, toma esse comprimido aqui, pois sua pressão deve ter subido bastante.
Por mais contrariada que estivesse Maria estica a mão, pega o comprimido e engole a seco, nega o copo d’água ofertado por Ana e mostra a língua de vários lados, para comprovar que ela havia engolido.
– Muito bem dona Maria! Agora a senhora me acompanhe que vou te levar até o seu quarto, pra gente poder sair das vistas de gente curiosa. Maria dá um sinal de positivo com a cabeça, se levanta vagarosamente, com o apoio da bengala e segue junto de Ana.
Chega ao quarto, senta na cama e ouve Ana comunicar que terá que descer pra ver se a limpeza está sendo feita, mas que voltaria o mais rápido possível. Maria dá os ombros e deita dizendo que está com muito sono. Ela se aconchega no colchão macio, que começa a lhe engolir, enquanto Ana a cobre com um fino lençol rosa.
– Quero ver minhas netas!
– A senhora sabe que é somente depois do almoço que elas podem vir. Agora descansa que logo, elas estarão com a senhora.
Ao invés de remédio para a pressão, Ana tinha administrado a ela, um potente calmante para momentos como esses de crise. Usando sempre o argumento que falaria com o doutor Luiz, deixando sempre suscetível a tomar os remédios. – ainda bem que ela apagou, agora vai dar tempo de fazer as minhas coisas antes que ela acorde. – Comenta murmurando, enquanto fecha a cortina, deixando a luz do banheiro acesa, para não ficar tão escuro caso ela acordasse. E se retira fechando a porta vagarosamente.
Passado o efeito do remédio, três horas depois, já bem próximo do horário do almoço, Maria se descobre lentamente e senta na beirada da cama, com a cabeça baixa e pesada assim como seu corpo, a boca seca fazia se sentir como se tivesse entornado um quilo de sal de uma vez dentro dela. Querendo acabar de uma vez com aquela sede que a resseca por dentro, sabendo que encontrará água no criado mudo que fica ao lado de sua cama, estica o braço, sem ao menos olhar, tateia um pouco, esbarra no que ela já sabia ser seu abajur, pensa em liga-lo, porém não o fez, pois a sensação de fraqueza e aquela sede inconveniente, já eram mais que suficientes para caber mais um sol queimando suas retinas envelhecidas. Tateia um pouco mais e pega a garrafa plástica de um litro d’água já pela metade e deixa todos os protocolos de etiquetas de lado, leva o gargalo da garrafa a sua boca e com quatro ou cinco goladas fortes, que dilatam sua garganta, acaba com a água e a sede que a consumia.
Levanta-se, se guiando pela luz que saia pelas frestas da porta do banheiro, caminha até a pia, para molhar um pouco a nuca, pois sente que seu quarto ficou abafado mais que o normal, inclina sua cabeça para dentro da pia, enquanto com as mãos em formato de concha joga pequenas porções de agua em sua nuca e têmporas.
Ao levantar a cabeça, seu corpo todo estremece, desequilibrando para trás, busca apoio na parede fria em sua retaguarda. Quando um imenso calafrio toma conta de seu corpo fazendo todos os seus poros se arrepiarem. O coração bate acelerado queimando seu peito e quase saltando a boca. Depois de alguns segundos contraindo os olhos, pode soltar o ar preso em seus pulmões.
Caminha confusa, porém um pouco mais relaxada, em poucos segundos já está de volta à beira da cama, mas dessa vez de frente para a porta de entrada, já com os cabelos ajeitados, para que seu rosto não fosse visto. Como se soubesse, apesar de não possuir nenhum relógio que pudesse controlar o tempo, que alguém chegaria em breve. Poucos segundos se passam, até ouvir a batida de Ana na porta, anunciando que trazia consigo o almoço. Abre um sorriso e pede para que ela entre.
– Olha ela! Sorriso lindo no rosto, bom ver que acordou bem. Pra comemorar esse bom humor, trouxe a comida que a senhora mais gosta. – Diz Ana, estranhando aquele sorriso largo.
– Ana você é um anjo que caiu do céu. – diz ela puxando a mesinha mais para perto de seu corpo arqueado. Pega o primeiro pedaço de coxa de frango frita, dá uma abocanhada tão faminta, que sobra só o osso, enquanto com a outra mão cava rapidamente o prato, com uma colher de sopa profunda.
– Calma dona Maria ou a senhora vai se engasgar. – Comenta Ana, num tom suave, quase não acreditando em suas próprias palavras, enquanto aponta para um copo de suco, daqueles em pó, com sabores artificiais de frutas.
– Desculpe meus maus hábitos dentro da etiqueta brasileira, pois acordei faminta e feliz. Então, pra não me sentir tão deselegante, eu posso adotar o padrão de etiqueta italiano ou marroquino, você escolhe. – Diz ela enquanto toma um belo gole de suco de manga e solta um arroto.
– Bom vê-la tranquila e sorridente.
Desta vez, uma vez que o primeiro pegou Ana de surpresa, Maria segura o refluxo dos gases que o suco havia provocado e pedindo desculpas pelo tranco que o mesmo lhe dera, ela complementa.
– Só não arroto propositalmente como eles, daí eu já acho que é demais pra mim. – Diz ela soltando uma curta gargalhada. – mas minha felicidade tem motivos, que na verdade são dois... Duas! Minhas netas, onde elas estão?
– Bem, a senhora já terminou de comer. Então vou lá buscá-las, enquanto a senhora se prepara por aí.
Entendendo imediatamente o que Ana queria dizer com “se prepara”, ela se levanta e vai direto ao banheiro, desta vez com os olhos fixos na pia de porcelana, com adornos dourados, assim como a bica curva que nela está embutida, lava bem as mãos, logo em seguida o rosto e escova os dentes, destruindo de uma vez a evidencia de uma deliciosa refeição. Dando lugar a um hálito, tão gélido quanto uma brisa de inverno na serra. Ainda sem levantar a cabeça, depois de terminada sua higiene, sai do banheiro, desliga a luz e encosta a porta, sem ao menos olhar pra trás. Volta a sentar, com uma excitação tão visível em seu corpo que parecia uma adolescente a espera do ídolo. Seu corpo só pararia de se sacudir, quando de fato, suas netas estivessem com ela.
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Maria
RandomQuando a promessa é quebrada e as consequências são extremas, tudo se caótico.