Sentada sozinha à mesa, varre com os olhos todo espaço do refeitório, enquanto seu café esfria. Sistematicamente, dá uma mordida no pão, olha toda a sala até parar em seu canto esquerdo, mais uma mordida e todo processo se repetia para o lado direito, até ser interrompida por Miriam, perguntando como ela está.
- Estou bem. - responde ela prontamente, porém olha para os seus ombros, evitando seus olhos.
Miriam acha estranho e tenta olhar os ombros buscando algo, mas não encontra nada. Só então percebe, que ela está olhando por cima deles e não para eles. Olha para trás curiosa, mas não consegue ver nada que deixaria Maria tão aérea.
- Maria!- exclama ela. - Está tudo bem mesmo?... Quer conversar? - insiste.
Volta os olhos para Miriam, e pergunta se estaria disposta a ouvir mais uma história sobre dela. Advertindo que ao contrário das outras não seria um conto de fadas e sim uma parte da história de sua vida.
Miriam tenta não mostrar curiosidade alguma, mas via ali uma oportunidade única que a favoreceria no seu trabalho mais adiante. - Só vou ouvir por que vejo que você está realmente precisando desabafar.
Maria a olha com certo descrédito e complementa: - Não esqueça os detalhes, para poder ganhar pontos com seu chefe. Miriam finge-se ofendida por alguns instantes, falsamente dizendo que não ouviria mais. Entretanto usa mais uma vez argumento de que ela precisaria desabafar.
- Nem para mudar a desculpa você serve. - sorri e continua. - A Ana ao menos se esforçava. Bem antes de você querer desistir de novo vou começar. - Dá uma breve pausa, para tomar um gole de seu café frio, torce o rosto, devolve a xicara sobre o pires. - gosto horrível! Pois bem. - Quando ouvi da boca do meu tio que ele tinha assassinado meus pais e que minha tia encobertava ele esse tempo todo, fiquei praticamente a madrugada toda nos jardins da casa andando, chorando e com um ódio crescente dentro de mim. Imaginando que, se não fosse aquele desgraçado meus pais ainda estariam comigo.
Até que num determinado momento, não me lembro como e quando, me vi sentada no banco em frente ao chafariz, pensando o quanto seria bom eles se afogarem naquela água borbulhante. Mas como nunca tinha matado ninguém, mesmo com tanto ódio, fiquei com medo de fazer.
Centenas de formas de vingança me vinham na cabeça, mas nenhuma delas, nem as mais simples, me via em condições de fazer sozinha. Então me convenci que teria que colocar meu primo e Pablo nessa comigo. Levantei daquele banco frio, certa de que iria juntar aquela gangue. Entrei em casa com o sol amarelando o céu e foi no momento em que eu estava subindo a escada para ir ao quarto de Felipe, que ouvi uma batida de porta e o meu tio resmungando. Me abaixei nos degraus por um instante, pra ouvir se ele vinha na minha direção, para o caso de ter que voltar correndo, mas como as passadas ficavam mais distantes, presumi que ele estava andando para o lado oposto, então, num ponto que daria para ver o que estava acontecendo, sem ser notada, que vi ele de costas, levantando as calças que teimavam cair e com o cinto de couro marrom segurado pela mão direita, indo em direção ao seu quarto.
Assim que ele entrou no quarto, fui correndo bater na porta pra ver se meu primo estava bem, porém, desisti, por medo. Por trás da porta pude ouvir seus soluços, me acovardei só de pensar que poderia piorar ainda mais seu estado ou de me sentir impotente por não conseguir consolá-lo. Fiquei alguns minutos ali, chorando do outro lado, até decidir ir para o meu quarto, antes que alguém se levantasse. Mais precisamente minha tia, para ordenar o café da manhã e organizar a bagunça do almoço com o Pablo.
Pablo era o garoto mais bonito da escola, forte, com cara de brigão. Aquele típico valentão, mas era ingênuo e muito fácil de manipular. A arma certa para persuadí-lo era só uma, essa! - Diz ela apontando para a pélvis. - e se usasse bem, comia na sua mão.
Um dia depois do almoço, que não terminou bem graças ao meu tio, como sempre. Segui a cartilha e depois de dar o meu melhor, se é que me entende. - Não fique corada Miriam, você entende muito bem disso, você é mulher e mulher tem esse poder. - Bem... Continuando... Depois de tudo feito, contei toda história para ele. Me fez até bem, dividir aquele fardo com alguém. Ele me fez carinho quando me viu chorando, nos beijamos e mais uma vez fizemos o que tinha que ser feito. - diz dando uma piscadela.
Aquele gostava, duas vezes dentro da dispensa, por fim consegui convencê-lo a me ajudar com a vingança. Me perguntou como e o que seria. Falei com ele que não tinha nada em mente, mas assim que aparecesse diria. Convencer meu primo a se vingar de seu pai, não foi uma tarefa árdua. Claro que tive que esconder meu desejo de vingança por sua mãe, pelo apreço que ele tinha por ela.
Começamos, eu e Felipe, com uma "vingancinha" infantil, daquelas de esvaziar o frasco de shampoo, derramar na pia as garrafas de bebidas caras, pegar o dinheiro de sua carteira.
Nós pegamos tanto dinheiro dele, que certo dia Pablo e eu estávamos contando os bolos, que meu primo ao entrar se espantou com a quantidade. Não gastei, pois a ideia era juntar para pagar alguma viagem para os três. Mas tudo isso parecia não causar nenhum mal a ele. Na mesma tarde ou no dia seguinte ele aparecia com um sapato novo, outra garrafa de bebida já aberta e com a carteira recheada de dinheiro. Minha irritação aumentava ainda mais, quando ele abria aquele sorriso para mim tentando ser simpático, mesmo bêbado, enquanto com o resto da família, continuava sendo um poço de grosserias.
As visitas de agressão nas madrugadas ao quarto do meu primo continuavam. Ouvia os seus gritos abafados, certamente para que a casa não ouvisse, mas seus soluços e gemidos atravessavam a parede que dividia nossos quartos. Depois de alguns episódios, tive coragem e finalmente perguntei, mesmo sabendo que as agressões vinham daquele monstro, o porquê ele chorava de soluçar algumas noites.
- Tá maluca mona? Logo eu a diva da alegria, chorando sozinha à noite? - Perguntou ele depois de fazer uma cara de espanto e tentar disfarçar. - Me poupe! - complementou.
Minha coragem para insistir, se esvaiu. Estava nítido que ele não estava à vontade, então o chamei para dar um passeio no shopping, com direito a banho de loja.
- Cortesia do meu prezado tio.
Ele me olhou com cara de espanto e com certo temor, mas logo pedi para que ficasse tranquilo, por que ao contrário do que eu desejava, não tinha surrupiado, ele tinha me oferecido de livre e espontânea vontade.
- E ainda me pediu para te levar.
Pensando em estourar o limite do cartão corremos, para as compras. Mas depois de uma hora no shopping pensei o que teria a mais por trás deste gesto de gentileza do meu tio. Comentei, brincando com Felipe, que os pais deles queriam ficar a sós, para terem uma tarde de amor.
- Argh! Que nojo!... Tira essa imagem da minha cabeça. - Dizia ele levando o dedo na garganta.
- O que acha de irmos atrapalhar a tarde deles?
- Mona nem por todo dinheiro que está nesse cartão será possível. Hoje é dia de salão da minha tia. Ela só chega lá pra noite.
Deixei o assunto de lado, mas minutos depois, algo não parava de soprar nos meus ouvidos, para ir em casa e ver o que ele estava fazendo. Sentados na mesa da praça de alimentação, com os nossos hambúrgueres e uma parte do que pretendíamos comprar. Dei a ideia, só para tirar as caraminholas, para que fossemos para casa de forma bem discreta, ver o que meu tio estava aprontando.
- Claro que não maluca!... Tá louca!... A gente tem todos os motivos do mundo pra querer tá longe dele e você quer ir pra perto da besta?
Fiz uma cara de choro, que não deu muito certo e depois eu apelei para o bom senso.
- A gente faz o seguinte... Vamos lá e se por ventura não tiver nada demais, nós voltamos...
- Isso você já disse!
- Espera bicha que eu ainda não terminei... Se não for nada, nos voltamos pra cá e eu peço para o Pablo encontrar com a gente aqui. O que acha?
- Sua vaca, covarde e safada. Se você acha que vou aceitar esse suborno... Tá bom!...Vamos logo matar a sua curiosidade e depois... ah! Pablo que me aguarde.
Pegamos um taxi e soltamos na frente da casa vizinha para que não houvesse chances dele nos ver chegar. Felipe digitou código do portão e deixamos ele encostado caso precisássemos sair bem rápido.
Resumindo, minha intuição estava certa. Assim que entramos pela porta lateral, percebemos que todos os funcionários haviam sido dispensados, a casa pareceria abandonada, não fosse uma voz feminina vinda da parte de cima.
Meu primo tremeu de medo ao perceber que estávamos perto de algo realmente ruim. Eu via a oportunidade de uma vingança maior e mais relevante, tão próxima, que já dava para ouvir o barulho do caos que iria causar. Meu primo recuou, se negando a participar ou presenciar algo que não queria carregar consigo. Mas eu não poderia deixar aquela oportunidade escorregar pelos meus dedos, pedi para que ele saísse e enquanto ele dava meia volta, puxei o celular do bolso, tirei todo tipo de som que ele pudesse emitir, enquanto subia a escada pisando em ovos.
No corredor, a voz da mulher e as risadas do meu tio, já eram tranquilamente audíveis. Continuei andando nas pontas dos pés com a câmera do celular já preparada para gravar e fotografar tudo que era comprometedor. Foi quando ouvi passos e a porta do quarto do meu tio rangendo ao ser aberta. Congelei por um instante e pulei para dentro do quarto de Felipe, que estava com a porta escancarada, por sorte, pois ele sempre a deixava trancada. - Acho Miriam, que na pressa de estourar o cartão, ele acabou deixando como estava. - mas enfim, se meu tio Altair não tivesse voltado para o quarto, sei lá pra que, teria me visto e certamente... - se bem que... Se ele me encontra, teria sido bem melhor ou não. - mas voltando ao assunto. - O vi passar de cueca, sorrindo para a porta do quarto do meu primo, parecia até que ele tinha me visto e ignorado minha presença, que nojo, e torci para que Felipe tivesse realmente saído de casa ou ter se escondido ao ouvi-lo descendo. Entretanto, passados alguns minutos, pude ver que eles não tinham se encontrado, porque ele subia a escada com uma garrafa de vinho e duas taças nas mãos.
Foi ali que tirei minha primeira foto dele, assim que passou pela porta do quarto. Depois de uns quinze minutos, ouvi barulhos sexuais e vi que aquela seria a hora de colocar minha vingança em jogo. Tirei todas as fotos de todos os ângulos que me permitia, sem que fosse descoberta e saí dali bem rápida, mas, ainda na ponta dos pés.
Encontrei meu primo do outro lado da calçada no portão do vizinho, no início da rua. Aflito ele me perguntou o porquê tinha demorado tanto. Disfarcei. - Miriam você quer beber um pouco d'água, molhar o rosto ou deixar a história pra depois?
- Não Maria, estou tranquila, mas... Vamos fazer o seguinte. Vou ali e já volto. Pego teu lanche e um café pra mim, daí a gente continua. Pode ser?
- Ótima pedida. Vou ficar aqui te aguardando.
Assim que retorna com o lanche, Mirian está com o rosto mais alerta. Maria então propõe que caminhem até seu quarto enquanto termina de contar a história. Miriam abre um suave sorriso dá os ombros deixa a bandeja sobre a mesa, enquanto Maria pega seu café com pão e começa a andar ao seu lado.
- Disfarcei, fingindo estar contrariada disse a ele que tinha perdido meu tempo e que minha intuição havia me traído. Falei que a mulher que estava com meu tio estava aparentemente tratando de negócios com ele. - Falavam de números, de porcentagens, não estava entendendo muito bem. - disse para ele.
Liguei para Pablo como havia prometido e voltamos ao shopping. Lá não aguentava segurar minha ansiedade. Minhas pernas não paravam de balançar esperando por uma brecha para poder falar a sós com Pablo sobre o plano que teimava em querer sair da minha cabeça. Porém meu primo com sua tara, não saiu nem por um instante do lado dele. Então, tive que segurar e controlar minha ansiedade e conversar sobre meu plano, bem mais tarde, por telefone. Ele ficou um pouco reticente, mais pelo Felipe, com medo dele sofrer qualquer represália por parte do pai, mas concordou que era simples, mas um bom o plano.
Na mesma noite, fiz uma conta falsa de e-mail, anexei todas as fotos no corpo do e-mail endereçado a ela, com o seguinte título "Olha o que o seu marido faz na sua ausência" e esperei a bomba explodir. Porém nada aconteceu no dia seguinte, tudo estava como sempre esteve, um caos já conhecido. A novidade da traição, não virou pauta das brigas em nenhum momento. Na noite seguinte pedi para Pablo enviar via SMS para o seu celular, enquanto enviava mais uma vez para o e-mail.
Desta vez à resposta veio rápida e com letras maiúsculas. "PARA VOCÊ QUE POSSUÍ ESTAS FOTOS, NÃO SEI O QUE PRETENDE GANHAR COM ISSO, MAS JÁ AVISO, QUE NÃO FARÁ COM QUE DISTRUA MINHA FAMÍLIA". - Sim Miriam, meu plano havia falhado.
- Maria tome seu remédio, já está um pouco tarde e eu tenho que terminar meu plantão.
- É mesmo, falei tanto que não notei o tempo passando. Pode pegar a água ali na mesa pra eu poder tomar o remédio? - pergunta, enquanto joga os comprimidos dentro da boca mostrando a ela a ação. Depois de verificar se tinha ingerido todos, ela se retira do quarto a deixando apenas sob a luz do abajur.
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Maria
AcakQuando a promessa é quebrada e as consequências são extremas, tudo se caótico.