Descobri o que desencadeou minha necessidade de vingança. Por inúmeras vezes vi que meu tio chegava em casa, injuriando a todos, tratando todos, independente de ser familiar ou não, como se fossem seres inferiores perante ele. Porém desta vez não consegui deixar que passasse impune, ainda mais depois de ter estragado o almoço de apresentação de Pablo para a família. Mesmo com os pedidos de minha tia para que me contivesse, não pude me permitir o silêncio mais uma vez. Gritei:
- O senhor pensa que é melhor que alguém aqui nessa casa? O senhor não passa de um bêbado. Um homem pequeno que recorre à bebida, porque não consegue carregar o fardo do dia a dia.
No início ele ignorou, me olhava por cima com a soberba que só ele conseguia transmitir tão bem. Mas não demorou muito para tentar me humilhar, alegando que se não fosse por ele o "homem pequeno", eu estaria em um orfanato e não no conforto daquela casa, comendo do bom e do melhor.
- Não estou aqui de graça, sei que uma boa parte do que você administra é minha por direito. Parte que deveria ser maior, já que meu pai era o cérebro e as mãos da empresa. - Respondi no mesmo tom que ele.
Ele bateu o copo de uísque que tomava na mesa de centro, cambaleante levantou do sofá e veio em minha direção.
- Altair! - gritou minha tia. - que no mesmo instante foi advertida a não tentar se levantar, pois sobraria para ela também. E voltou a sentar rapidamente por medo da raiva que ele sentia resvalasse nela.
Minha raiva era tanta que não me senti intimidada com a sua aproximação, minha vontade era de cuspir em sua cara, pela tamanha falta de respeito que teve com minha tia ao assediar a empregada na frente de todos.
- Sua pirralha malcriada. - gritava ele na medida em que se aproximava. - você está merecendo uma surra bem dada.
Vi seu corpo crescendo para cima de mim, seu braço com a mão espalmada se erguendo já projetando o golpe. Eu não tive outra saída, acuada, me encolhi o máximo que pude, protegendo meu rosto e esperei a pancada.
- Mas que porra é essa? O grito de surpresa do meu tio me fez ver o porquê o tapa ainda não tinha me atingido. Felipe havia entrado entre nós e segurado o seu braço.
- Nela o senhor não bate. Entendeu! - Falava meu primo, com uma coragem frente ao pai que nunca tinha presenciado. - você já fez e faz muitas vítimas aqui em casa. Já chega!
Felipe deu um empurrão contra seus peitos, que ele cambaleou para trás, sem reação, pelo que tinha acabado de vivenciar. Me tirou do canto da parede, me pegando pelo braço ainda se colocando entre nós dois, pedindo para que eu subisse ao seu quarto junto a ele.
- Não é que o veadinho virou machinho pra proteger a priminha? ... Ah não... Não me diga que... Cuidado, porque eu não vou aceitar netos retardados. - dizia ele num tom sarcástico, fazendo alusão a cultura popular sobre relacionamento entre primos.
Constrangida, enquanto saíamos da sala de estar, eu o chamei de porco e disse mais verdades para ele.
- Tá aí mais uma prova que meu pai é melhor que você... Ele amava seus parentes... Amava até você que não merece o amor de ninguém... Você nunca vai chegar aos pés dele! Nunca! - Gritei enquanto era puxada pelo meu primo, que implorava aos meus ouvidos pra sairmos dali depressa.
- Posso não ser melhor sua vadiazinha... Mas advinha quem está respirando. - Disse com os olhos cheios de ódio.
- Você vai ser sempre a sombra dele! Acostumasse e viva com isso. - Meu ultimo grito.
Saí da sala e fui direto para o quarto do meu primo e nos trancamos lá, nervosos, choramos por muito tempo, mas me senti aliviada por ter colocado tudo aquilo que estava sentindo para fora. Mas um pouco antes de nos trancarmos no quarto, mas precisamente na subida da escada, as coisas começaram a serem quebradas. O primeiro barulho que ouvi parecia ser do copo, depois foram só barulhos que não davam pra ser identificados. Minutos depois os barulhos dentro de casa cessaram, foi quando ouvimos o barulho do atrito dos pneus, corremos para a janela. Era o carro do meu tio que já apontava na saída da casa.
Apesar de tê-la chamado para o acompanhar e ela ter se negado sair da sala. Preocupado com sua mãe, Felipe pediu para que eu ficasse no quarto enquanto ele via se estava tudo bem com ela. Eu neguei ficar parada ali á espera e insisti em ir com ele, pois a ameaça já não estava mais dentro de casa. Saímos do quarto ainda com certa precaução, com ele a frente seguimos até o inicio da escada. Chegando à borda, podíamos ver a sua mãe, sentada no meio dela, com o corpo envergado para frente, as costas apoiadas no corrimão, soluçando, enquanto às lágrimas corriam aos montes pelo seu rosto. Sua mão direita repousava em sua perna, enrolada por um pedaço de pano ensanguentado, que pingava grandes gotas de sangue que sumiam sobre o tapete vermelho que cobria o piso.
Felipe vê aquela cena e desce em disparada. - Mãe! Meu Deus do céu! É o fim, venha vamos ao médico! - Grita enquanto estende as mãos para que ela possa levantar.
Secando as lágrimas, ela respirou fundo e disse que não era necessário e que aquilo tinha ocorrido quando foi tentar catar os cacos de vidros espalhados pela sala.
- Como das últimas vezes também? - Dizia ele sobre os vários outros machucados acidentais logo após os excessos de seu pai. - mãe, eu sei tanto quanto você, não precisa mentir pra mim. Venha, vamos ao banheiro cuidar disso. - disse ele enquanto eu interrompia dizendo que deveríamos ter ido dar parte dele na delegacia.
Minha tia no mesmo instante olhou para mim, perdendo a calma que aparentemente tinha, disse que a culpa daquilo tudo ter acontecido, foi por eu não ter aprendido a ficar calada.
- Essa é a minha família! - gritava ela. - e você nunca mais vai se meter em coisas que não te digam respeito! Entendeu?... Vai pro seu quarto... Vai pra qualquer lugar... Mas saia da minha frente.
- Mãe calma.
- E você Felipe!... Como foi capaz de fazer... Aquilo com seu... pai? Perguntou ela ofegante. - uma total falta... De respeito. - complementa.
Sério e consciente de tudo, Felipe disse que as atrocidades que seu pai cometia com sua família já era o suficiente e não precisava se estender a mais ninguém.
Minha tia o empurrou, dizendo que poderia cuidar dela mesma e que não precisava da ajuda de ninguém, enquanto subia o resto da escada em direção ao quarto. Felipe tentou ir atrás para tentar ajudar de alguma forma, porém antes dele subir mais um degrau ela o advertiu para que ficasse onde estava, senão não seria o seu pai o agressor. Ele parou e sentou no degrau onde tinha posto o pé e começou a chorar dando razão às palavras de sua mãe.
- Primo, não carregue essa culpa, por que ela não é sua. Desde mais nova, das vezes que vinha aqui te visitar, algumas vezes via que ele te batia. Algumas noites em que meus pais dormiam antes de mim, eu saía do quarto de hóspedes pra dormir contigo e o via saindo do seu quarto colocando o cinto de volta na cintura. Dessas vezes esperava ele sair para bater em sua porta, mas sempre te ouvia soluçando. Quis entrar, mas não tive coragem de te ver chorando. Mas nunca o vi tão agressivo assim com minha tia.
- Foi porque você veio morar aqui prima. Por que antes era igual ou pior que hoje.
- Acredita primo, essa culpa não é sua nem da minha tia. Temos que tomar providência para que isso não aconteça mais.
- Já te falei para não se meter no assunto que não te diz respeito. - Dizia minha tia, com o olhar amortizado.
- Mas ti... - Antes de me deixar falar ela continua. - Felipe pegue sua prima, se arrumem e saiam, voltem tarde. Pois seu pai vai chegar mais bêbado que estava e eu não suporto mais brigas familiares hoje.
Ela terminou de falar, fantasmagoricamente virou as costas e desapareceu nas sombras do corredor, sem lhe dar a oportunidade de ouvir mais nada. Bateu a porta do quarto de hóspedes e depois disso a única coisa que ouvimos lá dentro foram soluços.
Contrariando às ordens da minha tia, não saímos de casa, mas tentamos sair do radar do meu tio o máximo possível. Primeiro saímos dos lugares óbvios, que com certeza procuraria se quisesse arrumar confusão. Então nós ficamos nos dois únicos lugares que ele dizia ter aversão, por se achar bom demais para eles. O refeitório dos funcionários e a cozinha.
Ao contrário da cozinha, que vivia iluminada, o refeitório dos funcionários tinha um tom sombrio, um quadrado de cinco por cinco, pintado de cinza e com a iluminação baixa, dava uma sensação claustrofóbica com o passar do tempo. Tenho por mim que tenha sido arquitetada propositalmente. Levando em conta o pensamento do meu tio, em que todos os funcionários sugavam seu dinheiro, não fazendo o que tinha que fazer. Aquele lugar seria ideal para ninguém querer permanecer por muito tempo.
Por volta de meia noite, congelamos ao ouvir passos pela proximidade da cozinha. Estávamos caminhando em direção à mesma, já relaxados do ocorrido de mais cedo, para pegar algo mais forte que refrigerante. Felipe na sua reação habitual voltou para o refeitório em passos curtos e silenciosos, enquanto eu encostei na parede para ter a certeza se era realmente a besta ou se era minha tia querendo fazer mais uma vez um compilado de calmantes com álcool. A ameaça anunciava sua aproximação assoviando uma canção indecifrável, porém, só fui saber realmente que era o meu tio, depois de ouvi-lo cantar com uma voz etílica e desafinada uma musica deprê que parecia ser de sua época.
O volume da musica aumentava gradualmente na medida em que ele se aproximava. O refeitório era a ligação entre a cozinha e a saída lateral da casa. Tínhamos como sair facilmente, mas o medo de Felipe de fazer algum barulho que chamasse à atenção da ameaça, não permitiu tal ação. Assim que surgiu na entrada da cozinha, pude ver rapidamente, antes de me esconder, o estado tenebroso em que estava. Sua camisa social azul clara, entreaberta e para fora da calça, abotoada com os botões trocados, carregando uma garrafa de uísque vazia na mão, com as bainhas da calça dobradas de forma torta, uma até o joelho e outra até a canela.
Lançou a garrafa em direção a pia, mas a mesma perdeu força antes mesmo de alcançar o alvo, espatifando no chão. Andou cambaleante até a geladeira e sumiu abaixando atrás de sua porta, passados alguns segundos, até aparecer com uma garrafa de vinho em uma mão e um pedaço de queijo em outra. Abocanhava o queijo com o plástico que o cobria, dando logo depois um longo gole no vinho, empurrando o queijo seco em sua garganta. Se engasgou, tossiu e cuspiu todo queijo, vinho e plástico que estava na sua boca. Pude ver pela fresta da porta do refeitório, que estava escondida atrás, algumas lágrimas escorrendo de seus olhos enquanto sentava escorado na porta da geladeira. Os soluços e os murmúrios incompreensíveis começaram a surgir de forma mais intensa e somente me dei conta que ele estava com o pé ensanguentado no momento em que minha tia veio em seu amparo, perguntando o que havia ocorrido, mesmo já sabendo a resposta. Vi que aquele seria o momento exato de sair com meu primo. Chamei sua atenção, esfregando o chinelo de forma que só ele pudesse ouvir e assim que olhou apontei com o braço a saída da casa. Se agachando, tentando passar despercebido, saiu rapidamente. Eu que estava a uns dois metros da porta, voltei ao ouvir o grito que ecoou pela cozinha, meu primo com medo, sumiu na escuridão do lado de fora.
- Me deixa! - gritava ele, enquanto tentava desviar a garrafa de vinho dos botes que minha tia dava. Depois de algumas poucas tentativas, tirou e a colocou em um lugar mais afastado dele.
Minha tia se afastou um pouco, olhou para o pé todo ensanguentado, olhou ao redor, até parar com o olhar fixo para porta da sala dos funcionários. Naquele momento congelei, pensando que ela havia me visto, recuei assim que ela se levantou e veio na direção do refeitório.
Entrou no refeitório a toda e foi a um pequeno banheiro que ficava do lado oposto da porta em que eu estava escondida atrás, poucos segundos depois saiu de lá, carregando nas mãos um rolo de papel higiênico e uma vassoura.
- Você não se cansa de se maltratar e se machucar? - perguntava minha tia com uma voz pesarosa, enquanto limpava seu pé e continuou. - Isso está destruindo nossa família, você não percebe?
Soluçando, fungando e chorando muito, meu tio deixa cair à máscara de homem durão, provedor que tudo pode e se deita no chão nu e gelado, abraçando os joelhos, como uma criança com medo de apanhar. Enquanto minha tia pedia para que ele não se levantasse, porque ela iria varrer os cacos espalhados, para evitar que ele se cortasse de novo.
- Deixa esses cacos aí! - gritou ele. - Eu não mereço a piedade de ninguém!
- Altair, me escute de uma vez por todas. Você errou, errou feio, mas não a nada que desfaça esse erro. A única forma de você amenizar o que você causou, é você sendo o oposto que está sendo. Tem que ser presente, tem que dar... - Diz ela em voz baixa, olhando ao redor, tentando ser discreta.
Ouvi pouco do que ela disse, deu pra escutar claramente, mas a princípio não entendi ou não quis entender, sobre ela dizer "ela precisava de uma figura paterna, já que ele havia a feito perder". Mas logo veio a confirmação.
- Eu matei os pais dela, não tem perdão para o que eu fiz, entende? - Gritava ele, enquanto tentava driblar a mão que abafava sua boca.
- Escute aqui, o que houve foi sem querer, você quis pregar uma peça em seu irmão, mas perdeu o controle do carro porque estava bêbado. Como disse, foi um erro grave, mas com ela você tem que tentar acertar.
No momento em que ouvi sua confissão e a confirmação da minha tia, minhas pernas bambearam meus olhos que em certo momento sorriam com o sofrimento dele, agora se afundava em lágrimas. Um tremor tão grande tomou conta do meu corpo, que não conseguia fazer mais nada, a não ser ficar ali, estática e impotente, atrás da porta de madeira, de uma sala escura, observando por uma brecha os assassinos dos meus pais.
Com às únicas forças que consegui reunir, corri para fora da casa. Sem me preocupar se algum deles tinha ouvido meus chinelos estalarem no assoalho. Cheguei ao jardim, perdida, sem saber aonde ir, sem saber o que fazer. Pensei em procurar pelo meu primo, para desabafar, mas ele já tinha tido problemas demais naquele dia. Perdi às contas de quantas voltas dei no pátio, pensando que mal minha família teria feito com aquele monstro para que ele tirasse a vida deles, mas não encontrei nenhum motivo forte, além da inveja que ele tinha pela popularidade do meu pai e minha mãe em todos os lugares que eles estavam. Depois de tantas voltas, sentei no banco em frente ao jardim e fiquei olhando o céu estrelado, até uma brilhante ideia pousar em minha cabeça e que caberia só a mim para fazê-la se tornar real.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Maria
AlteleQuando a promessa é quebrada e as consequências são extremas, tudo se caótico.