Capítulo 10

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  Murmúrios ressoam ao redor dos corpos sobrepostos no meio do salão.   Uma corrente de pessoas afasta os mais curiosos, enquanto o sangue corre lentamente sobre o assoalho frio.
  Abrindo caminho entre os curiosos, que murmuram hipóteses sobre o ocorrido, meu filho, Dr. Luiz chega acompanhado de uma equipe de resgate, na esperança de conseguir salvar aquelas duas vidas. – Façam seus trabalhos! – grita ele. – Eu quero esse salão vazio, agora!
  Rapidamente às pessoas do cordão de isolamento, começam a afastar os curiosos, enquanto cuidadosamente a equipe de resgate busca vida no meio de todo aquele sangue. Um dos socorristas retira o primeiro corpo, que revela o crânio na parte frontal afundado, causado pelo choque com o chão, já sem vida sobre outro, que provavelmente devido a sua composição física ou por sorte, ainda apresenta sinais fracos de vida. – Está viva. – Grita o socorrista. – A colocaram com todo cuidado na maca, enquanto outros cobrem o corpo sem vida, com um tipo de tecido prateado e o deixa ali, enquanto a maca rapidamente some pelo corredor a dentro.
  – Esse corpo não pode ficar aqui! – grita meu filho, aos socorristas e ao mesmo tempo acompanha a movimentação se dissipar pelos corredores, olha em todas as direções. Até que por fim, seus olhos se encontram com os meus.
  Eu observei tudo, desde o primeiro grito de alerta, até aquele momento, mas o gesto do meu filho ao me ver, fez com que meu coração apertasse de tal forma, que não pude encará-lo por muito tempo e tão pouco permanecer ali, debruçada no parapeito, sob o seu olhar interrogativo.
  Por volta de uma hora depois de ter voltado ao meu quarto, à enfermeira Miriam aparece em minha porta, trazendo o meu almoço. Com o semblante um pouco desanimado e entristecido, bate na porta que já está aberta, anunciando sua entrada.     Pergunto o porquê trouxe o almoço no quarto e com palavras mais limitadas possíveis, disse ser “ordem do doutor” e se retira comunicando que voltaria em breve com os meus remédios.
  Nesse dia, apesar do episódio em que vi seu filho aflito e preocupado, tentar esconder o corpo morto com seu próprio, para que eu não me assustasse e a tristeza no olhar de Miriam, até que a tarde estava bem agradável, o quarto estava fresco e a comida bastante gostosa. Como prometido, minutos depois, quando dava as últimas garfadas na refeição, Miriam chega com meus remédios. Os tomo direto, sem medo de pesadelos ou de qualquer lugar que eles pudessem me levar. Deito-me e espero o colchão começar a me sugar.
  Horas depois, desperto com um suave aroma de café. Me espreguiço, ainda sonolenta pelo efeito do remédio e abro os olhos devagar, pois parecem pesar uma tonelada cada pálpebra, parece que dormi por um ano, até notar duas silhuetas bem conhecidas do meu dia a dia. Uma era Miriam, ereta como sempre, com uma prancheta numa das mãos e uma caneta nervosa noutra. A outra silhueta era a do meu filho, que está sentado de pernas cruzadas, com um pequeno caderno no colo, murmurando coisas para a enfermeira.   Pelo visto não tinham percebido que eu havia acordado.
  – Minha visão está meio turva, mas consigo saber quem são vocês, só não sei por que estão aqui. Não que vocês não sejam bem vindos.
  Tomando a frente, antes que Miriam falasse, meu filho argumenta que estava passando pelos corredores, encontrou com Miriam vindo nessa direção e aproveitou para vir conversar um pouco.
  Brinco com ele, por ter trazido café pra mim, digo que faz muito tempo que um homem não me traz café na cama. Mas ele sério ignora e pede para que Miriam se retire.
  – O que houve que está tão sério meu filho?
  – Bem, tome seu café. Vamos conversar enquanto isso.
  Ele dá uma grande pausa, olha para xícara de café, como se estivesse pedindo que eu começasse a beber.   Pego a xícara, ele simultaneamente pega a sua e toma um pouco. Pigarreia antes de perguntar qual era minha relação com Amadeu.
  Eu respondo, que pelo fato de nos encontrarmos poucas vezes, somente quando ele vem tratar de negócios com ele. Mas que minha relação com ele era normal e que ele sempre foi muito gentil comigo
  – Estou perguntando, porque Ana certa vez, me disse que você quase o agrediu, é verdade?
  – Ana e seus exageros. – dei uma pausa e pensei. – Não tão exageros assim, eu perdi a cabeça com ele certa vez, mas não foi com ele em si. Se é que me entende.
  Ele me olha de uma forma, que eu queria evitar. Cara de que estava achando minha história maluca e me achando maluca.
  – Deixa eu te explicar melhor meu filho. Naquele dia, enquanto ele comia na minha frente, me veio uma lembrança muito ruim. Então acabei descontando nele, mas nunca tive nada a reclamar de sua postura. Ao contrário, ele sempre foi muito galanteador, me cortejava como uma princesa.
  – Entendi. Você sabia que Ana viria aqui hoje?
  – Mas ela está sempre aqui meu filho.   Não me diga que vocês estão se separando? – Não sei por que fiz tal pergunta, agora está com o rosto mais sério, que quando chegou. – desculpe meu filho, não é da minha conta...   Lembro-me dela ter dito que viria aqui falar comigo hoje, mas quem acabou vindo foi a Miriam.
  – Qual foi a ultima vez que encontrou o Amadeu?
  – Acho que foi há uma semana, meu filho.
  – E quanto a Ana?
  – Ana eu encontrei anteontem. Contei uma das minhas histórias de princesa pra ela, igual aque... Nossa! –  Ele nem me deixou terminar de completar.
  – Preciso ir Maria, depois com mais tempo ouço a sua história. A propósito, parabéns você esta cada vez mais jovem.
  – Obrigado meu filho, você é uma amor. Mas espero que Deus console a família do pobre Amadeu. E que Ana se recupere logo.
  Ele parou no meio do caminho, gira o corpo e olha pra mim curiosamente. Aí eu disse a ele que tinha visto os corpos estendidos no chão, antes que alguém os cobrisse. E antes que me perguntasse. Disse que só saí do quarto para saber que barulho alto tinha sido aquele. Ele volta a girar nos calcanhares e informa que Miriam traria o lanche mais tarde.
  Despedi-me dele, mas provavelmente ele não ouviu, pois bateu a porta sem ao menos falar ou olhar pra trás. – Quer saber, não vou ficar me lamentando, vou deitar e esperar a Miriam trazer meu lanche.
  Uma pena meu poeta, pintor... Meu artista ter partido. Tratava-me bem, me cortejava. Era o único que desejava esse corpo velho. Que eu sei usar muito bem ainda, como arma de sedução. Sedução é só uma questão de percepção. Se deixa aparente as qualidades e esconde os defeitos. Se bem que do jeito que ele foi voraz para não dizer outra coisa, se os defeitos estivessem à mostra, ele os ignoraria com certeza.
  Só em pensar no nosso último encontro já me dá saudades. Senti-me tão jovem, tanto tempo não me permitia beijos tão acalorados, abraços tão apertados e toques tão íntimos. Ai meus Deus! Chego a me arrepiar toda. Seria blasfêmia colocar Deus no meio dessa história... Como eu fui suja!
  – Suja por que dona Maria o que houve?
  – Ah! Que susto que você me deu! Porque vocês não aprendem a se anunciar? Que saco!
  – Calma dona Maria. Eu bati varias vezes, mas a senhora não escutou.
  – Tá bom, não precisa ficar nervosa, pode tirar a mão do bolso e para de olhar pras minhas partes. Como se você não tivesse uma!
  – Vou dar um tempo para senhora se recompor e depois te dou seu lanche e seus remédios.
  Depois que me recompus, pude perceber o quão grosseira fui com Miriam. Mas também pudera me assusta e ainda me tira o prazer de pensar na loucura que tinha feito. Mesmo assim resolvi pedir desculpas pela falta de educação da minha parte. E explico que o dia está sendo muito difícil pra mim, pois perder um amigo e ter uma amiga em estado grave é um fardo bem pesado pra um só dia.
  – Imagino dona Maria. Se quiser posso solicitar um calmante pra senhora.
  – Não vai ser necessário menina. E você como está?
  – A gente fica sempre triste. Ver uma colega de trabalho se acidentar dessa forma. Mas enfim, vou deixar à senhora lanchar em paz. Qualquer coisa é só chamar que eu venho.
  – Se quiser conversar a respeito qualquer hora dessas, pode falar comigo, sou uma boa ouvinte, de vez em quando.
  Assim como meu filho, ela sai sem gesticular ou falar nada. De repente, porquê seus olhos já estavam cheios de lagrimas e não queria mostrar sua fraqueza. Enfermeiras gostam de passar por forte. Recordo-me de Ana, no dia em que sua mãe caiu acamada. Ela apareceu mais séria que o habitual, me deu um bom dia quase forçado, acompanhado de um sorriso amarelo, que logo percebi que algo de ruim havia acontecido. Fui puxando um assunto daqui outro dali, ela continuava sólida, como se nada a abalasse. E foi somente quando eu perguntei sobre sua mãe, que notei suas estruturas ruírem. Uma única lágrima minou daquele olhar petrificado, mas logo teve o rastro de sua existência apagada por sua mão.
  – Estou aqui pra cuidar da senhora, e não te importunar com os meus problemas dona Maria. – Me disse.
  Mas não demorou muito pra ela começar a desabafar comigo. Falou que sua mãe há dias tinha contraído uma pneumonia, por causa de um resfriado mal curado, que deixou seu sistema imunológico baixo. E que ela estava cortando um dobrado para tentar administrar o tempo com o novo emprego, aqui sua mãe e que não estava sendo uma tarefa fácil. Esse foi o motivo, eu presumo que fez com que ela abrisse mão de cuidar de mim e da nossa casa. Só assim ela teria um pouco mais de tempo para a mãe. Mas enfim são só suposições.
  Melhor eu parar de pensar nisso e tomar meu café, senão vai esfriar, e café frio aqui no Brasil não rola. Ice coffee é pra gringo.
  Argh! Logo quando vou comer meu pão vem à imagem do Amadeu! Chego até a me arrepiar. Lembrar-se dele naquele dia, é lembrar automaticamente do meu tio. E tá aí uma coisa que eu não quero. Vou tomar só o café e tirar um cochilo que é a melhor coisa que eu faço. Há! Há! Também não tem outra coisa assim tão interessante pra fazer. Ainda mais depois dessa partida dupla.

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