Capítulo 19

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  – Faz uma semana, mas não me esqueci, foi tudo tão rápido que quando percebi já tinha sido tarde demais. Minha única reação foi de gritar por ajuda o mais alto que pude, para que alguém pudesse me acudir, enquanto tentava estancar o sangue que escorria pelo buraco feito em seu peito.
  – E o que a senhora estava fazendo no quarto?
  – Como já tinha dito, fui ao quarto para organizar minhas coisas, deixar tudo certo. Organizado antes de ir embora.
  – Continue.
  – Estava organizando os remédios dela ao lado do criado mudo, próximo à porta do banheiro, quando ela entrou e falou comigo normalmente. Tomei um leve susto, mas segui o protocolo. Fiquei em um ângulo em que pudesse vê-la e voltei a separar e organizar os remédios da receita. Ouvi um grito que logo foi suprimido, ao mesmo tempo um vulto a jogou na cama e sobre ela cravou um pedaço de madeira em seu peito. Duraram poucos segundos até ele sair de cima, gritar uma ou duas coisas e pular de cabeça do segundo andar.
  – O que exatamente ele gritou senhora... Miriam?
  – “Vamos queimar juntos  no inferno”, enquanto rasgava as ataduras que cobriam seu rosto.
  – E o senhor doutor Luiz, onde estava?
  – Eu havia acabado de encerrar a consulta com ela, estava colocando o relatório na pasta. Quando ouvi os gritos e saí, todo pessoal da segurança já havia se mobilizado em seguir o protocolo. O pátio já estava sendo esvaziado e todos estavam sendo direcionados às suas celas. No meio do pátio vi o corpo já sem vida do paciente que se jogou. No quarto, quando cheguei, vi que os socorristas tentaram de todas as formas salvar a vida da paciente, mas mesmo não sendo especialista percebi que não haveria outra saída. Ela tinha perdido bastante sangue, seu corpo estava pálido e imóvel.
  – Hemorragia interna, causada por uma perfuração na região umbilical, provocado por um objeto de madeira e blá! Blá! Blá!... – Senhores o que estou querendo saber aqui é... Como um interno, com antecedentes de violência, circula livremente com um cabo de vassouras pontiagudo e ninguém nota?   Como uma interna que assumidamente tem alucinações anda sozinha para um lado e outro? Vi algumas imagens dessa ala e percebi que se isso acontecesse em outro lugar, à tragédia seria a mesma, pois seus colaboradores largam os pacientes e vão confraternizar em um canto qualquer.
  – Senhor...
  – Deixe-me falar doutor Luiz! Foram realizados exames toxicológicos nos corpos e pra minha surpresa pude ver que os remédios não estavam sendo tomados em sua plenitude, pois os indicadores da substância estavam bem abaixo do que se esperavam. Cadê o profissionalismo, vocês não tiveram treinamentos específicos para perceber qualquer tentativa de burlar esse momento senhora Miriam?
  – Sim senhor.
  – Então porque aconteceu? Porque aconteceu com a Ana e com o Amadeu, que por sorte nossa ou azar dele, sua família não entrou com um processo contra nossa instituição. Não podemos ficar contando com a sorte de famílias ambiciosas, que mantém seus entes trancados só para desfrutar de seus bens.
  – Os pacientes antes de entrarem aqui passam por uma investigação e uma triagem. Me corrija se eu estiver errado doutor Luiz.
  – Sim, de praxe.
  – Então me diga como é que foi que o senhor interno Pablo... Saraíba Ito, que lá fora foi vítima da interna Maria de Albuquerque, foi transferido para o mesmo pavilhão de sua agressora?   Ainda sabendo que tinha a nota de uma das famílias informando que não seria prudente deixá-lo perto dela.
  – Essa anotação não veio na ficha senhor. Tenho ela aqui e posso te mostrar.
  – Isso não vem mais ao caso. O garoto morreu e isso tudo seria evitado se aqui estivesse sendo gerido de acordo com as normas. Ter de vir de outro estado para resolver conflitos por imprudência. A mãe do garoto, apesar de estar com a copia da solicitação de distância protocolada em mãos, aceitou fazer um acordo e iremos reembolsá-la fora do meio jurídico. Do mais eu ainda irei resolver. Todos os envolvidos serão afastados do cargo pelo período de um mês a partir do primeiro dia do mês corrente, para atualização das funções, tendo cinquenta porcento de seu ordenado retido. Ou é isso ou são demitidos por justa causa. Bom final de Plantão para vocês que o meu ainda não chegou à metade, muitos conflitos de interesse para lhe dar, com licença.
  – Foi tarde! Uma dor de cabeça a menos. Onde já se viu colocar fogo no namorado só por que ele não a quis mais? E ainda falou na frente do meu marido que eu estive flertando com ele.   Como se eu fosse qualquer.
  – Pior foi quando essa louca falou que meu pai estava estuprando ela pelos cantos da casa e mais, a abusando sexualmente enquanto dormia. Isso que dá, não aguentou o rojão da morte dos pais, toda noite se entupia de remédio e cachaça até apagar numa tacada só.
  – Hã! ... Até parece!... Que eu iria molestar a filha do meu irmão. Isso eu nunca faria. Tenho minha mulher pra isso. Lembra filho que ela te chamava de gay? Por viver evitando seus ataques e por não querer entrar no quarto dela. Se é que me entende.
  – Ainda bem que não fui, senão era eu o queimado. Se bem que vocês até sugeriram pra garantir a herança lembram?... Ufa! Escapei por pouco.
  – O pior foi tirar toda a roupa na nossa frente e começar a desfilar nua por toda a casa.
  – A gota d’água mesmo, foi o rasgo que ela fez na cara da minha mãe, com aquele soco na piscina. Na alucinação dela achava que minha mãe ajudava você a se aproveitar dela, sabia de tudo e não ligava.
  – Fiquem quietos, vocês já estão se excedendo. – Fala Débora colocando a mão na cicatriz. – o diretor está vindo aí, vamos resolver esse problema e ir embora.
  – Boa tarde família, Meu nome é Roberto, sou o representante da clínica, por favor, me acompanhe até o meu escritório?
  – Abafado aqui né? – Reclama Altair enquanto se abana.
  A estratégia de tirar da zona de conforto, para facilitar a negociação já começa a dar certo. – Como tinha prometido, está aqui o histórico da paciente Maria, sua sobrinha, desde sua entrada aos dezesseis anos e meios, permanecendo por três anos até o óbito. – Diz Roberto com o olhar pesaroso.
  – Posso fazer uma pergunta um pouco fora do assunto doutor?... Há alguma chance de não recebermos a herança?... É que somos um pouco leigos nesse assunto.
   Notando que não se incomodavam nem um pouco com a perda, seu semblante congela, voltando ser o gestor frio de costume.
  – Senhora Debora, pelo meu entendimento a sua família só não terá a herança por completo, caso haja algum outro parente vivo, mas aconselho que procure um advogado... Sobre a indenização, faço o deposito em nome de quem?
  – Pode por na conta do meu filho. Ele merece... – mas não se acostume. Este tipo de presente é uma vez só na morte. – diz ela enquanto a família gargalha com a piada mórbida. Até ser interrompida pela forte pigarreada do diretor.
  – Certo. Espero que cumpra o nosso acordo senhora Débora. Pois processos podem levantar coisas que podem prejudicar ambos os lados.
  – Fique tranquilo senhor Roberto, o seu depósito é a minha palavra. Agora vamos procurar um advogado família e enterrar de uma vez por todas essa história. – Gargalham mais uma vez. – Até senhor Roberto.
  Roberto responde com um aceno de cabeça e os acompanha até a porta, bate e volta mais uma vez a sua mesa. Suado, afrouxa a gravata e  se joga na cadeira. Liga o ar condicionado buscando relaxar daquele dia exaustivo, fica imóvel por alguns minutos, até o suor secar por completo, puxa um cigarro da cartela, acende e dá um profundo trago. Quando volta à mente, a lembrança recente daquela família dissimulada que acabara de despachar, solta um amarelado sorriso enquanto balança a cabeça com um sinal de negação.
  – Ratazanas.

Fim.

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