Capítulo 08

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  Trêmula e com os olhos imersos em lagrimas de felicidade, Maria quase não consegue levar o copo d'água a boca, sem que deixe cair um pouco sobre o seu vestido. – Que estabanada que sou – diz, pegando alguns lenços de papel, pousados sobre a mesa.
  Deu quatro respiradas fundas, vagarosas, da forma que Felipe lhe ensinara e em poucos segundos, percebe que toda aquela euforia está se controlando. Seca as ultimas gotas de água que moravam em seu queixo. Em voz alta, tenta recordar de onde tinha parado de contar a história para suas netas.
  – Lembrei! – Exclamou ela, enquanto surge um sorriso tímido de seu rosto. – É que, fico meio sem jeito de contar esse tipo de história, quando não é para as minhas princesas. – Mas já que você pediu não me custa nada tentar. Espero que goste.
  Coloca sua bengala ao lado da poltrona macia, forrada de um veludo de cor marrom escuro, em que se senta relaxadamente. Um nervosismo surge discretamente, num pequeno gesto do dedo indicador direito, que teima em forçar sua unha sobre a costura do braço da poltrona.
  – Vou voltar só um pouco à história, pra você entender direitinho. – O rei Altair depois de ter tomado as rédeas de sua carruagem das mãos do cocheiro e com o corpo saturado de licor, que ingeriu de manhã até segundos antes de pegar as rédeas, conduzia sua família em alta velocidade, em uma perseguição voraz a carruagem de seu irmão mais novo.   Querendo mostrar, que era ele que ditava as regras, já que era o mais velho e rei há mais tempo.
  Quando ele, aos trancos e barrancos pela estrada de terra batida, toda acidentada, conseguiu emparelhar com a carruagem do irmão. Até o momento em que sua carruagem passou sobre um enorme pedaço de rocha, o fazendo perder totalmente o controle, que ele achava ter naquele momento.
  Sua carruagem se chocou tão forte contra a do irmão, tirando ela por completo da estreita estrada de terra batida e a arremessando em uma íngreme e mortal ribanceira.  Inicialmente os cavalos serviram para impedir o impacto das carruagens com as árvores menores. Mesmo assim pedaços dela se soltavam tão fácil, como pelo de gato persa. O golpe final foi dado por uma imensa árvore centenária, cujo tronco tinha a mesma ou maior amplitude que a carruagem que a encontrou.
  O que sobrou da carruagem ficou estacionado ali, nas raízes daquela grande árvore. Um misto horrível de madeira, tecidos, pele, ossos e sangue, animal e humano. Príncipe Felipe desceu a ribanceira, num total desespero, temendo pela vida de sua amada, enquanto gritava seu nome.   Sem pensar duas vezes, começou a cavar, tirar tudo que via na sua frente, até encontrar o corpo sem vida do rei, com as pernas e braços quebrados em varias partes e um grande buraco no topo da cabeça, onde dava lugar à coroa. Sacudiu levemente, para ter certeza do óbito e o moveu para o lado.   Revelando a rainha, com a cabeça toda voltada para trás, com os olhos abertos acinzentados, o rosto arroxeado, um fino fio de sangue escorria por sua narina direita. – Sem sinal de vida – Lamentou o príncipe. – Pela razão, já com dois mortos desenterrados, a mente dele já se preparava para aceitar mais uma morte, mas seu coração, cheio de amor, ainda tinha esperança. – Desculpe-me se a história que estou contando agora tiver detalhes diferentes que contei para minhas netas... É que eu improviso tanto, que às vezes fica difícil lembrar o que contei...   Pensando bem, deixa pra lá, você não vai saber a história que contei pra elas mesmo. – Diz ela com um sorriso envergonhado e a bochecha avermelhada. – Vou continuar.
Por desespero, jogou o corpo de sua tia para o lado oposto em relação ao do rei.   Viu sua princesa, enrolada numa das patas traseira de um dos cavalos, rapidamente removeu alguns pedaços de madeira para acessá-la mais facilmente. Levou seu ouvido próximo ao nariz, constatou que estava viva, porém com a respiração muito fraca.   Removeu a pesada pata do animal sobre o seu tórax, revelando um grande corte na parte posterior de sua perna direita. Imediatamente, rasgou um pedaço de seu vestido, pegou um galho forte, para ajudar a dar pressão e fez um torniquete, para estancar o sangramento. Com bastante cuidado, verificou se havia mais algum ferimento grave, fora os muitos arranhões que tinha pelo corpo, não encontrou mais nenhum. Logo, com ela em seus braços, começou a subir a colina que havia descido em pleno desespero.
  Um pouco depois da metade da colina, o cocheiro sujo e arranhado da queda o aguardava, oferecendo sua ajuda. O príncipe inicialmente negou, com medo de que algo mais grave pudesse acontecer com ela longe de seus braços.   Esses que já fraquejavam pelo acúmulo de ações que já tiveram. Com mais uma proposta do cocheiro, com os olhos submersos em lágrimas, ele cedeu, passando sua amada cuidadosamente para aquele homem, que parecia estar tão habituado com sobrecargas, que pegou a princesa e ainda ofereceu seu ombro como apoio para o príncipe exaurido.
  Somente no caminho de volta viram o corpo do outro cocheiro. Empalado em um grosso galho de árvore. – Teria sido arremessado e... – Triste fim – comentou o príncipe exausto.
  À dez metros da estrada, estava à rainha, desolada. Amparou o filho fatigado, enquanto o cocheiro levava o corpo desfalecido à princesa para dentro da carruagem, colocando cuidadosamente sobre um dos assentos, sendo seguidos pela rainha, que se senta em frente ao corpo e do príncipe que senta aos pés de sua amada.
  – Vá para o palácio o mais rápido possível. – ordena o príncipe. – Ela precisa de muitos cuidados.
Prontamente o cocheiro atende sua ordem. Fazendo um sinal de que havia entendido com a cabeça, fecha a porta da carruagem, que em poucos segundos, após um leve tranco, toma a direção do castelo.
  Sentado agora na beirada do banco onde a princesa Maria estava disposta, tentando de alguma forma mantê-la livre, em vão, dos solavancos que a carruagem dava o príncipe, com o ódio que lhe saltava as vistas, e que ao mesmo tempo fazia franzir seu cenho com tanta força, que o deixava quase irreconhecível. Reprovava o acalanto que sua mãe ofertava ao seu pai. Que chorava como uma criança cheia de medo e se encolhia o máximo que podia, para não ser percebido.
  – Como consegue ainda ter empatia por este homem?
  – Ele é meu marido. – responde a rainha, de forma serena.
  – Ele é um assassino! – exclama o príncipe, cerrando os dentes, para conter os gritos de ódio, que forçavam em sua garganta pra sair.
  – Ele é seu pai Felipe! E você vai respeitar essa condição, por bem ou por mal. – ameaça a rainha, falando de forma ríspida e elevando o tom da sua voz.
  – A sua condescendência, como essa de agora, também contribuiu pra isso tudo. Você sempre passando a mão na cabeça dele, como se ele fosse uma criança que não sabe o que faz.   Maltrata o povo... – Calma. Filho, ele vai mudar. – você dizia... Me bate... – se acalma filho, ele não sabe o que faz... Te bate...
  – Chega! – interrompe com um grito de dor, misturado com raiva e culpa que Felipe nunca tinha ouvido antes. Abafando a voz fraca da princesa, que chama por seus pais repetidamente, por um instante.
– Meu amor! ... Acorde!... Meu amor!
  A princesa Maria, lentamente abria os olhos, perdidos, inicialmente embaçados, viu Felipe seu amor, com os olhos vazando de felicidade. Contudo, a escuridão ao redor, tomou conta mais uma vez de sua vista e a levou para um sono profundo.
  Apesar do ódio e tristeza que sente em relação a tudo o que esta acontecendo, o príncipe prefere voltar suas atenções a sua amada, que criar uma nova discussão. – você irá ficar bem. – Falou enquanto, afagava suavemente sua têmpora. Mas foi inevitável. Pouco antes de chegar aos portões do castelo, a rainha ordena que o cocheiro pare a carruagem e se junte a eles. O simples senhor, em toda sua sabedoria, argumenta que não e prudente um vassalo, entrar em qualquer aposento da nobreza.
  – Não se preocupe. Como pode ver. – aponta ela. – Seu rei está desacordado graças ao álcool e depois dele quem dá as ordens sou eu.
  Obedecendo prontamente a rainha, o cocheiro, pede licença e de cabeça baixa, senta-se no assoalho do veículo.
  – Como se chama cocheiro?
  – Xavier majestade. – Responde rapidamente o súdito.
  – Pois bem, quero que vocês dois prestem bastante atenção no que vou falar. – Com a voz firme a rainha continua. – O que houve hoje foi um acidente, vocês entendem? – Confirmaram com um balançar de cabeça. – Se perguntarem, precisamos dizer isso, pra evitar qualquer tipo de revolta do outro reino. Vamos dizer que estávamos atrás e vimos quando o cocheiro deles perdeu a direção e tombou no barranco.
  Felipe fez menção de que não iria concordar com aquela história sem sentido.
  – Felipe, isso deixou de ser um pedido há muito tempo.
  – O que pretende fazer rainha? – Pergunta com um tom irônico.
  A rainha sem paciência dá o xeque-mate. – Escuta aqui moleque! – grita ela. – ou você me obedece ou te deserdo. Cansei da sua rebeldia.   Diga-me como você vai cuidar da sua amada, sem os recursos que a nobreza te dá? Porque esse fardo. – apontando para a princesa. – será você que vai carregar... Não vou deixar você, nem ninguém destruir minha família.
  Boquiaberto pelas maldades que a mãe destilou, pois nunca a presenciou daquela forma vil, olha para mãe, depois olha para sua amada e diz: – eu aceito seus termos... Rainha, mas fique sabendo que foi você, a toda poderosa, que destruiu essa família, quando escolheu seu lado. – Cocheiro, toca para o castelo da Rainha, por que o assunto de todos já se encerrou.
  Ao chegar às portas do seu palácio, a rainha salta da carruagem, enquanto seus súditos se curvam diante sua presença, ordena que alguém chame o curandeiro, sua equipe e que peçam a eles que tragam duas macas. Como formigas, depois que tiveram seu ninho atacado, correram em todas as direções possíveis, carregando e repassando a ordem aos ouvidos que encontravam pelo caminho.
  Enquanto aguardava a chegada do curandeiro, voltou à porta da carruagem e pediu para que seu rei, já acordado, continuasse deitado, pois já havia esquematizado toda história. – Vou dizer que você se feriu, ao tentar resgatar seu irmão e família. Sairá como herói destemido aos olhos do reino deles. – comunica ao rei carinhosamente e se transforma totalmente ao se dirigir ao filho. – E você moleque, espero que se lembre do que você tem a perder.
  O rei se deita imediatamente depois do comando de sua rainha. Enquanto perguntas surgem na cabeça do príncipe, que acompanha tudo aquilo, com uma tristeza que lhe tirava as forças. “Se ela tem tanta força e influência assim sobre ele, porque não tenta muda-lo”? Ou será que esse já é o molde dela? Para cada resposta que ele dava outras perguntas que surgiam, o deixava cada vez mais confuso.
  Após cinco minutos de espera, o curandeiro e mais dez homens, traziam consigo três macas. – Na carruagem, depressa! – Ordenou a rainha.  Levam a primeira maca para dentro da carruagem e lentamente retira o corpo do rei. Todos ao redor soltam um som de espanto, segundos depois o corpo desfalecido da princesa Maria surge. O vestido sujo de sangue e rasgado trouxe a tona, comentários audíveis de compaixão, pela situação que estava.   Que cessa assim que a rainha se vira para eles. Um silêncio sepulcral toma conta de tudo, que nem o vento ousaria assoviar naquele momento.
  – Ainda hoje redigirei um manifesto, que detalhará todo ocorrido, no triste dia de hoje. – Pronunciou ao quebrar o silêncio e continuou. – O mais importante é que o nosso rei passa bem.
  O príncipe se retira antes que ela termine e parte no encalço da maca de sua amada, deixando a rainha sozinha, que contava com a presença dele para dar mais autenticidade a sua versão.
  Adentrando ao palácio, já nas dependências reais, o curandeiro junto com parte de sua equipe, se assusta ao ver o rei, assim que ouve a porta bater, saltar da maca como se nada houvesse acontecido. Sisudo e com o olhar ameaçador ordena que abaixem suas cabeças.  Ouviram o estalar da fechadura atrás deles. A rainha acabara de trancar a porta e se dirigiu ao rei de uma forma carinhosa – Fale mais baixo meu rei, não queremos alarde... Não por enquanto. – Sorria cinicamente. – Enquanto a vocês, não preciso lembrar, que não viram nada além de seu rei convalescente em seu leito ou será?...
  Antes que pudessem pronunciar qualquer coisa, as ameaças do rei a eles e suas famílias, já invadiam seus ouvidos.
  – Agora saiam. – Ordenou a rainha ao destrancar e abrir a porta.
Ao abraçá-la por trás, dizendo que ela tinha pulsos firmes, rei a assusta. Séria, ela afasta seus braços e vira para ele dizendo: - Aguentei muita coisa nessa vida, pra perder meu reino numa guerra.
  – Perder? – pergunta o rei, cético.
  – Seu irmão sempre teve um exército maior e mais leal que o nosso. A derrota era óbvia, por isso criei toda essa história. É melhor se sair como um herói a um covarde chorão.
  – Mulher! – Exclama ele num tom de ameaça.
  Ignorando o seu tom, a rainha pede para que ele vá repousar, pois amanhã o rei teria que ir ao outro reino fazer o comunicado aos súditos de seu irmão, rainha e dizer que a princesa está e ficará sob nossos cuidados.
  – Agora, se me der licença, tenho que pedir ao escrivão que redija o comunicado de óbito dos reis.
  Do lado oposto aos aposentos do rei, ficam os aposentos do príncipe, para onde a princesa foi levada. Príncipe Felipe ordenara ao curandeiro que lhe trouxesse os melhores e mais dedicados cuidadores do reino, para que nada faltasse a ela.
  – Quero que dê o máximo de atenção ao estado dela, cuide bem de suas feridas para que ela possa levantar o mais rápido possível dessa cama. – Vou buscar roupas limpas para ela. Não quero que a deixe sozinha, um segundo sequer. Entendeu? – O curandeiro fez que sim com a cabeça, enquanto o observou se retirar rapidamente do aposento.
  No corredor do castelo, olhando para suas paredes, onde as pinturas realçava sua beleza. O príncipe tomado pela emoção lembra-se dos bons momentos que tivera, em sua infância ao lado de seu amor. Sempre que ela o visitava.   Passavam nesse corredor na velocidade de uma flecha, como sempre apostando quem chegava mais rápido do outro lado. Sob os gritos eufóricos de ameaça de castigos por parte de nossas mães, riscavam as paredes de ponta a ponta, com enormes pedras de carvão ou quando ficavam de sua varanda, jogando pequenos pedaços de pedra sobre as carruagens, para acordar os cocheiros, que costumavam dormir no assento onde as guiavam. – Lembranças boas. – comenta o príncipe em voz baixa, enquanto um sorriso surgia no meio de toda aquela tristeza.
  – Boas memórias, pelo visto!
  – Sim, de uma época... – ao olhar quem era a interlocutora. – Não vale mais a pena compartilhar com você.
  – Um dia entenderá que foi para o bem da família. – diz a rainha sem muitos rodeios. – E por falar em família, farei uma reunião com você e seu pai, para decidir o futuro dos reinos.
  – Reunião em família não está no acordo de silêncio rainha Débora. – ironiza o príncipe enquanto vira as costas e continua seu caminho.
  – Volta aqui moleque! – gritava a rainha na medida em que ele se...
  – É o seu celular que está tocando. Bem, então acho melhor parar a história por aqui, para que você possa trabalhar meu filho. Com certeza vai atender alguém importante.
  – Sempre são importantes. – Responde Dr. Luiz.
  – Me diga uma coisa? Você gostou da história meu filho?
  – Bem interessante.
  – Percebi que gostou, ficou até anotando. Só não vale contar ela pra minhas lindinhas, porque essa é minha função. – Diz ela com um sorriso largo.   – Agora me deixe ir que não quero te atrapalhar mais.
  – Pode deixar que agora, é entre a senhora e eu.
  Maria ouve as palavras de seu filho, enquanto vagarosamente caminha para a porta de saída, com um lindo sorriso estampado em seu rosto. Ao tentar abrir a porta é surpreendida por Ana que já a aguardava.
  – Oi minha linda nora. Aposto que estava ouvindo atrás da porta... Tô brincando. Veio falar com meu filho?
  – Primeiro vou acompanhar a senhora, depois eu venho e falo com ele. – Diz Ana enquanto fecha a porta da sala do Dr. Luiz.
  Maria começa a explanar toda a sensação que teve ao contar um conto de fadas ao seu filho. – Não me recordo de ter contado, algum dia. – puxando pela memória. – se eu soubesse que ele gostaria tanto de ouvir, teria contado antes. – Mas nunca é tarde né? – pergunta ela com uma alegria que não cabia dentro de si.

MariaOnde histórias criam vida. Descubra agora