Noite I

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Olhei através do vidro da janela tentando enxergar o caos, pensando que talvez veria toda a nossa doença e toda a nossa miséria. Tudo parecia normal, vazio, mas normal. Melhor dizendo, todas as coisas que não eram próprias do homem estavam normais: o sol se pondo, o céu escurecendo, as árvores alaranjadas do outono... Tudo em perfeita ordem. Parecia uma armadilha: céu bonito, com princípio de luar... Saia do seu esconderijo, o mundo parecia dizer, parecia, pois não estava. Não, não era seguro sair, era melhor ficar.

Olhar para fora era deprimente às vezes. Resolvi voltar o meu olhar às coisas mais seguras, às coisas internas. Meus olhos percorreram as estantes com seus conteúdos expostos e delas foram até às gavetas com seus conteúdos ocultos. Movi o olhar para o canto onde ficavam todas as coisas que eu amava e levei um susto quando percebi que a que a mais preciosa havia sumido. Como não percebi antes?

Talvez porque se tratava de algo pequeno e delicado, mas tão precioso que sua ausência não deveria ser imperceptível. Tão pequeno e delicado... Percorri as estantes, atrás de fracos de perfume, dentro de orelhas de livros, do lado de um porta retrato. Nada. Procurei em meu guarda-roupa, olhei detrás dos casacos, revirei a sapateira com os calçados e derrubei as contas de uma antiga pulseira. Nada.

Na cozinha também não. Não estava em nenhum dos potes e panelas, nem na geladeira, em nenhuma das portas dos armários. Olhei no box do banheiro, atrás da porta do quarto, embaixo da cama, do outro lado da janela. Do outro lado da janela! Lembrei. Pequei o telefone do meu lado da janela. Disquei. Seis dígitos.

— Alô?

— Oi.

— Oi, sou eu.

— Tudo bem?

— Por um segundo eu achei que você estava aqui.

— É, já faz um tempo...

— Saudade.

— Muita saudade!

Mentiras Do Tempo Fugido Onde histórias criam vida. Descubra agora