Histórias horríveis

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Numa tarde chuvosa, de calor sobreposto ao frio e o frio sobreposto ao calor sucessivamente, leio trechos fora de ordem de um livro fora de ordem, que me enche de asco e admiração e que me faz pensar sobre todas as criações que me provocam, essas filhas de musas travessas, que me fazem maldizer seus nomes em voz alta para que cinco minutos depois eu possa cair em sua perfeita armadilha de palavras, traços, cores, sons inventados e imagens de um paraíso que penso ter visto em um sonho três noites atrás. É um livro de história horrível, mas que se faz tão bonito de se ler, tecido com palavras de ouro, algumas das quais nem sempre sei dizer o que querem dizer, mas são bonitas, bonitas, dançam nas páginas lindamente, causando-me vertigem, mas mesmo belas, contam contos horríveis, horríveis, que me fazem querer ler ininterruptamente até que eu o acabe, ou ele acabe comigo às cinco horas da manhã quando já não saberei nada sobre mim, ou sobre o mundo e eu questionarei todas as leis que regem o o universo, antes de tomar um bom café forte para começar mais um dia, mesmo sem a certeza de que os novos dias são mesmo os começos de alguma coisa.

Mas eu quero ler essas coisa ruins, mesmo não querendo pensar nessas coisa ruins e sabendo que é impossível ler sem pensar, mesmo que seja possível ler sem saber que estou sendo enganada, e agora sei que estou sendo enganada por essas palavras bonitas, que dançam e dançam e por isso recusam as linhas, recusam tantos apoios que nós que não somos palavras precisamos e tudo o que eu menos preciso agora é de distração, porque o mundo está acabando, mas o livro que me chama quer fazer-se de mais importante, mimese do mundo, quer ser mundo completo, quer ser meu, quer que eu seja sua, quer me enganar, porque sabe que não sou lúcida por completo, sou fascinada pelo estranho brilho dos autores que eu detesto e que secretamente gosto, mesmo que com um gostar secamente, que preferiria gostar de qualquer outra coisa, mas que verdadeiramente gosta daquilo que dizem, mesmo que aquilo lhe faça sentir um arrepio na espinha por horas a fio. É bom.

Sinto a mesma coisa por aqueles de persona espaçosa e egos que preenchem as salas, mas que falam coisas com sentido, tanto sentido que me resta apenas concordar com o que dizem e refletir sobre isso, mesmo que as vozes desses seres provoquem em mim múltiplos arrepios, eu ouço tudo o que dizem, contrariada e encantada, sabendo que permanecerei no mesmo estado de repulsa e atração por horas e horas a fio; coisas que eu odeio são essas coisas que me agradam e me agradam não porque eu escolhi sentir simpatia e completude de por elas, mas porque inconscientemente essas coisas me agradam e nutrem o meu ser com as coisas que ele precisa e que por pirraça ele não me conta que precisa, porque eu me recusaria a lhe dar, e por consequência recorre aos terceiros que me provocam e lhe dão exatamente aquilo que ele necessita no momento.

E se eu preciso dessas histórias horríveis para sobreviver, não admitirei, pelo menos não agora, não em voz alta e continuarei espiando o livro ainda fora de ordem, todas as vezes que o meu corpo, contra a minha vontade me fizer espiar essas histórias horríveis, que me assustam e me procuram, simplesmente pelo fato de eu odiar gostar delas e odiar tanto gostar delas que eu acabo por verdadeiramente odiar e gostar e gostar e odiar, tudo ao mesmo tempo. É bom. Só não é bom esses ventos fortes dessa tarde, que parecem querer arrancar minhas janelas. Acho que outra chuva vem.

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Foto de capa: pintura de Christian Valdemar Clausen  

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