Aquele prédio tem cheiro de sol

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Quando eu era um pouco mais jovem, um pouco mais corajosa, talvez um pouco mais feliz, me pus a estudar, ou melhor, continuei a fazer a única coisa que sabia, a única coisa que sempre foi uma constante, e sou grata por ter sido assim. Quando você é uma criança que vive na escola, você não pensa nas crianças que não vivem na escola, você nem imagina que há crianças que não estão nela, porque você vive na escola e nunca as viu. Mas, não demora muito tempo para você descobrir que nem todo mundo está lá. E você percebe como você tem sorte e como é irônico você ter sorte por ter tudo aquilo que já deveria ser seu por direito. Tive sorte, muita sorte, mas ao mesmo tempo não tive tanta, mas tive, tive mesmo.

Continuei a fazer o que eu sabia. Fui estudar, era uma pirralha, não sabia de nada, embora eu ainda não saiba, e sei que não saberei tudo numa vida, mas era muito, muito pior. E era quase bom não saber nada, porque você quer desesperadamente saber de tudo e quando você aprende quase um pouco, você pesquisa mais e no final até aprende alguma coisa e aprende também que precisa aprender mais. Tudo bem. Tudo muito melhor do que era antes. Quando eu era menor do que sou hoje estudava em um prédio igual a todos os outros, nem sabia que poderia haver algo diferente, porque todos os prédios eram iguais e eram iguais os prédios que eram de todos. Os únicos espaços que eram diferentes eram aqueles que não eram para todos, mas como não os visitei muitas vezes sou incapaz de descreve-los pra vocês.

O meu lugar de estudo tinha salas azuis idênticas e portões verdes no pior tom de verde que se possa existir. No lado de fora era tudo muito cinza, tudo cheio de concreto, às vezes cheio de mato, às vezes cheio de gente. E o pátio da escola, quando chovia ficava ainda mais cheio de gente. Eu odiava os dias de chuva na escola, especialmente na hora da saída: pouco espaço, muito desespero. Ficava por lá mesmo, me demorava muito, esperava os minutos cuspirem todos os alunos do prédio. Eu sempre era a última a sair. Isso com chuva, com sol... A verdade era que eu evitava as pessoas. Gostava do espaço, ainda mais quando ele se esvaziava. Mesmo que as salas não fossem tão grandes, mesmo que não houvesse sequer uma biblioteca e os livros se dividissem entre os que descansavam nas prateleiras de uma sala e os que descansavam numa escada desativada, eu ainda gostava do espaço. O meu tempo lá foi bom, e melhor ainda porque já acabou.

Quando eu cresci um pouco mais e continuei a estudar, resolvi estudar fora, mas não fora como os detentores de papel moeda fazem, eu era sortuda, mas nem tanto. Outra cidade era o bastante, outra cidade era o que dava, outra cidade era perfeito. Eu conhecia pouco do lugar, tinha espectativas, vagas, boas, confusas. Tinha, tinha sim. Mas a ansiedade era maior que a minha imaginação. Fui estudar num prédio cheio de história, num prédio cheio de fantasmas de literatos e artistas, tudo o que eu não era, tudo o que não sou. O prédio era bem no centro da cidade, bem no centro da pequena cidade maior que a minha. Ainda era interior, ainda era tudo caipira, mas tudo muito, muito grande e as pessoas, maiores ainda.

O prédio havia nascido para receber o sol, tinha cheiro de sol, cara de sol, tinha um milhão de janelas para receber a luz do sol. Tinha gosto de café com biscoitos. Tinha muitas escadas e uma biblioteca: Gigante! Eu poderia dormir lá uma semana inteira e ninguém jamais me encontraria e não é porque sou pequena... Tinha também um auditório com palco e piano desafinado e dúzias de salas com o dobro de janelas com cortinas com décadas de poeira. Jogamos todas fora. O prédio era o cenário perfeito para um grupo de desajustados e introvertidos que pouco ou nada tinham em comum, exceto o fato de serem desajustados e introvertidos. Pensando bem, ele ainda é. Ele ainda tem um palco e um piano desafinado, talvez mais desafinado ainda. Ele ainda é o cenário perfeito para um grupo de desajustados e introvertidos, mas ele está vazio agora e eu já não sei mais quando ele não vai estar. E eu já me convenci de que não seremos nós que o povoaremos de novo. E eu sei que talvez quando ele voltar a ser habitado, nenhuma dessas coisas esteja mais lá. Talvez nenhum outro grupo como o nosso o desperte tão cedo. Talvez ninguém mais perceba que ele tem cheiro de sol. E embora ele continue impecável e imponente quando a noite também se ergue, ninguém vai olhá-lo como eu o olhava sozinha de manhã.

Sempre vou lembrar de chegar mais cedo que o próprio sol, encarar um pátio vazio, lindo e fantasmagórico, enquanto aguardava as almas boas que vinham. Lembro do rapaz mais tranquilo do mundo caminhando com um copinho de café e dos seus cabelos compridos, maiores que os meus. Me recordo da bibliotecária falando bom dia, às vezes para a nossa mesa cheia, às vezes para a nossa mesa vazia, porque em alguns dias todos estavam tão desesperadamente ansiosos para algo acontecer que chegavam cedo, e noutros, estavam tão miseravelmente cansados que chegavam tarde e só parcialmente, apenas o corpo, sem espírito nenhum. Lembro das meninas que falavam pouco e das meninas que falavam muito. Os meninos lá eram escassos. Lembro da moça que chegava sempre sorrindo, mesmo quando tudo não estava bem para ela, embora tudo automaticamente ficasse bem para nós no momento em que ela chegasse. Lembro bem porque não faz tanto tempo, mas ao mesmo tempo parece tudo tão distante e escrevo para não achar que sonhei, para achar não achar que foi mentira. E quando eu enlouquecer e achar que inventei tudo, pelo menos vou achar bonito quando tornar a ler.

Lembro de uma ocasião, na aula de literatura portuguesa, quando O Professor explicou porque achamos que saudade é uma palavra que só existe em nosso idioma. Isso não é bem uma verdade, como também não é bem mentira. Existe saudade nos outros lugares, embora às vezes essa saudade esteja fragmentada em expressões e não expressa por uma única palavra. Saudade é basicamente o resultado de três outros termos antigos que eu anotei: "as saudá", que significa melancolia, "solitates", palavra latina para solidão, e "suavitatem", que significa suavidade. Saudade, seria portanto um sentimento de solidão e melancolia, mas, que por remeter algo bom do passado, seria uma sensação suave, já ninguém tem saudade de algo triste... Saudade era o nome dado pelos portugueses à sensação de distância que experimentaram durante as grandes navegações.

Voltando ao Brasil, voltando a nós, ao nosso lugar, tivemos muita sorte. Tivemos muita sorte em ver como as coisas funcionam de manhãzinha, na calmaria. Tivemos muita sorte de ver como as coisas não funcionam de manhãzinha, na preguiça. Tivemos muita sorte, mas ao mesmo tempo não tivemos, porque não estamos mais lá e ao mesmo tempo estamos, porque tudo o que eu falo no passado deveria acontecer no presente e porque tudo o que faz parte da minha rotina são as coisas que há meses não faço mais. Acho que tudo isso são saudades dos lugares que eu estive. Saudades são coisas de português.

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