Três semanas já se passaram. Três longas, duras e infernais semanas. As piores da minha vida. Na verdade, nem mesmo vi os dias se passarem. É como se eu tivesse parado no tempo, naquela noite. Toda vez que fecho os olhos, sinto o cheiro sufocante da fumaça, ouço os gritos e barulhos de sirene na minha cabeça, minha pele coça, como se a sensação da fuligem ainda estivesse impregnada em mim e a cena... a cena do meu irmão morto, faz tudo parecer apenas um maldito pesadelo. As lembranças do que aconteceu depois da tragédia que abalou não só a minha cidade, mas todo país, ainda são um pouco turvas na minha cabeça. Eu me lembro de cenas, de flashes fragmentados, como se após ter encontrado o meu irmão, nada mais fizesse qualquer sentido.
Lembro que cheguei a ser levado para o hospital quando mais ambulâncias chegaram ao local do incêndio. Estava deitado na maca, com uma máscara de oxigênio, encarando o teto da ambulância. Todos falavam comigo, os paramédicos, Mathias, mas eu não os escutava realmente. Meu subconsciente estava fora do meu corpo, como se houvesse um botão dentro de mim que eu tinha desligado, para não sentir mais, para que... para que conseguisse sobreviver com aquela dor que se espalhava dentro de mim como câncer.
Foi quando nós chegamos ao hospital da cidade que descobri que ali também estava um verdadeiro caos. Já não havia mais vagas para receber os sobreviventes e famílias gritavam por todos os lados, a procura dos seus filhos, seus entes queridos. Não sei quem avisou minha mãe ou se ela apenas me viu deitado naquela maca no meio do corredor, sujo, em choque. Lembro como ela gritava de desespero, passando suas mãos pelo meu rosto, me abraçando e tentando entender porque eu estava ali. Foi então que a vi conversando com o meu professor de matemática e o momento em que ela desmaiou em seus braços. Ela já sabia! Foi o que pensei. Mamãe sabia que o Rafa tinha partido, que o seu primogênito não estava mais no mesmo mundo que nós. Vê-la daquela forma, desmoronando, foi como se outra parte de mim estivesse desaparecendo. A minha dor era tão grande, tão intensa e profunda, que houve um momento que simplesmente não pude mais sentir nada. Absolutamente nada.
Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram naquela noite e seiscentos e oitenta ficaram feridas. A notícia estava em todas as manchetes de jornais e da TV, por todo o mundo. Fazer parte desses números e acordar todas as manhãs sabendo que não vou encontrar o meu irmão no beliche de cima... eu apenas não consigo. Não quando tudo faz lembrar dele, suas coisas, seu cheiro, suas fotos. É como se a qualquer momento ele fosse entrar pela porta do quarto, tirar a sua roupa e se jogar na sua cama, como fazia todas as noites, depois de chegar da sua faculdade. O seu jaleco do trabalho ainda está pendurado atrás da porta e seus livros na estante. Desde que recebi alta do hospital, meus olhos não conseguem sair da porta do quarto, esperando que algum milagre aconteça e que tudo voltará ao normal, mas não foi isso que aconteceu até agora.
Só recebi alta do hospital três dias depois do incêndio. O médico havia informado que o processo de desintoxicação seria lento e que eu precisaria fazer um tratamento fisiorespiratório, pois até mesmo na saliva ainda podia sentir daquilo que inalei. Falar com um psicólogo também foi uma das exigências para que eu fosse liberado do hospital, mas não questionei ou me impus a qualquer uma das exigências. Na verdade, desde aquela noite, já não era mais o Mikael, ou pelo menos não o Mikael de sempre. Uma parte de mim morreu com o meu irmão e fez com que uma sombra pairasse sobre mim.
O velório de Rafael aconteceu um dia depois que tive alta do hospital. Aconteceu junto com outras vítimas e suas famílias, numa igreja da cidade. Eu tinha passado a manhã inteira sentado numa cadeira, observando sem descanso o caixão do meu irmão, com a tampa aberta, mas não me atrevi a me aproximar dele. Aquela não era a última lembrança que queria ter dele, por isso me neguei ao ver o seu rosto pálido e sem vida dentro daquela caixa. Muitas pessoas apareceram, amigos do Rafa, colegas de faculdade, professores, parentes distantes e até mesmo gente da minha escola. Tenho uma vaga lembrança da Diretora Cecília e da Sra. Marta confortando a minha mãe e me falando coisas que não fui capaz de absorver. Eu tinha simplesmente entrado em choque desde aquela noite e não conseguia sentir absolutamente nada, nem mesmo quando vi minha mãe se jogar sobre o corpo do meu irmão quando tentaram fechar o caixão para dar início ao cortejo. Foram os pais do Alex quem a seguraram e sustentaram durante todo o percurso até o cemitério da cidade.
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Stay
RomansaMikael é um garoto de dezessete anos que está iniciando seu último ano no ensino médio. Ele é bolsista numa pequena escola particular da sua cidade, onde também trabalha meio período como bibliotecário, para ajudar nas despesas de casa. Mika, como é...