Um dia por vez

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- Aline, não precisava ter pedido ao seu irmão. Nós poderíamos te levar. - reclamou a mãe de Madá quando chegou em casa e viu Aline com a mochila nas costas.
- Está tudo bem tia. Já dei trabalho demais e não é tão longe assim
- Não é longe de carro, mas de bike 8km com você no varão será uma viagem e tanto. - comentou Madá.
- Não se preocupem, meu irmão é magrelo, mas tem muita força. Ele mesmo se ofereceu pra vir, então achei que seria bom aceitar.
- Tudo bem. Mas olha, conte conosco pro que precisar! - disse segurando os dois braços da menina e olhando em seus olhos. Aline a abraçou.
- Muito obrigada tia.
- Olha! Ele chegou! - anunciou Madá.
- Tchau amiga. Obrigada por tudo.
Se abraçaram, então Aline abriu o portão e encontrou seu irmão.
- Quer descansar um pouco antes de voltar? - convidou Madá que também saira no portão.
- Não. Obrigado. Vamos pirralha?
Aline entregou sua mochila a ele e sentou-se no varão tomando o cuidado de cruzar as pernas para não atrapalhar a pedalada. Estava sorridente quando acenou pra amiga já em movimento.
- Valeu por vir irmão.
- Eu disse que viria.
- Sabe, uma vez assisti a um filme em que dois irmãos ficavam órfãos e a irmã quando ficou adulta, foi embora e deixou seu irmãozinho que ficou mudando de um lar pra a outro completamente infeliz.
- Eu lembro desse filme. No final ele encontra um lar feliz e cheio de amor onde cresce saudável e cheia de amigos.
- Eu não quero um novo lar. Eu quero continuar com você, meu irmão, minha família.
- Não depende só da gente.
- Só promete que vai tentar?
- Eu já prometi.
- Quando? Não me lembro.
Eric se recordou mais uma vez de quando disse aos pais que cuidaria bem da irmã até que eles voltassem.
- Eric?
- Oi.
- Porque você é tão calado?
- E porque você fala tanto?
- Não sei. Sai naturalmente.
- Hunrum
- O que aconteceu... Com eles?
- Acidente.
- Foi morte rápida?
- Sim. Instantânea.
- Ah...
Aline se perdeu no tempo por alguns minutos em profundo silêncio, Era como se estivesse admirando a paisagem a frente, mas a verdade é que ela sequer observou qualquer coisa a volta.
- Chegamos. - Eric a avisou quando chegaram de frente a casa. A vizinha veio ao encontro dos dois apressada.
- Oi Aline. Como você está menina?
- Bem, obrigada. - Respondeu com tristeza.
- Eu já fiz o jantar, podem vir comer conosco. - Ofereceu.
- Não precisa, mas obrigado. - agradeceu o rapaz.
- Até mais vizinha. - Se despediu Aline.
Estavam mais uma vez em casa e a sensação era tão ruim, como se uma tecla insistisse em bater que tudo era real e nada seria como outrora. Seus pais se foram. Pra sempre.
- Pode ir tomar um banho se quiser. Eu vou preparar algo pra gente comer.
- Você é quem está precisando. Olha como está suado Eric!
- Tem razão. É meio nojento né, cozinhar assim. - riu com mais uma lembrança de Alê.
- Ela te daria uns bons cascudos né? Aline parecia ler a mente dele.
- É. Daria. - Eric deu as costas rumo ao seu quarto. Não queria que sua irmã o visse chorar.
Aline foi até a cozinha e abriu a porta que dava pro quintal. Algumas das plantinhas haviam sobrevivido e estavam bem verdinhas. Eric havia mesmo cuidado, apesar de toda a tempestade. Voltou pra cozinha, encontrou a planilha de cardápio semanal. Sua mãe era tão metódica, tão criativa e organizada. Abriu a gaveta do armário e encontrou o avental dela, dobradinho, tinha seu cheiro o qual Aline sorveu com força tentando ter ao menos um pedacinho da mãe. Deslizou até o chão agarrada ao avental com as duas mãos.
- Porque mãezinha. Eu te amo tanto! Preciso tanto de você. Por que me deixou tão rápido?
Dessa vez caíram menos lágrimas e eram silenciosas. Aline observava tudo a sua volta e cada objeto tinha uma lembrança. A garrafa de café, por exemplo, elas duas compraram escondidas de Heitor, por ser muito cara em vista as garrafas comuns. Por fim, ele nem notou a nova garrafa na mesa. Homens.
- Pirralha? Ta tudo bem?
- Eu tô bem. Estava só lembrando...
- Vem, senta numa cadeira. - ofereceu a mão pra ela e a ajudou a levantar. Foi até a mesa de jantar e trouxe uma cadeira pra ela.
- Quando você fica sozinho, como consegue não pensar tanto neles?
- Eu não consigo. - Confessou.
- E não dói?
Eric não quis responder. Continuou procurando coisas na geladeira.
- Por favor, fala comigo. Você precisa se abrir.
- Eu estou bem.
- Não. Não está! Nossos pais morreram e você não tem nenhum amigo pra te consolar!
Ao ouvir isso, Eric fechou a geladeira com força.
- Desculpa. Não quis dizer isso...
Eric a ignorou. Preparou um macarrão ao alho e óleo. Sabia que sua irmã gostava tanto quanto ele.
- Então será assim agora... O cardápio dela já era? - Aline não se segurou quando viu a panela.
- Não é isso... Eu só não... Não dava tempo de cozinhar segundo o cardápio. - Eric se embaraçou.
- Você foi pra aula hoje? - Aline mudou de assunto.
- Não.
- É. Nem eu. Não sei quando estarei pronta pra ir.
- Viva o hoje. Já é o bastante.
- E como vamos fazer pra nos manter hein? O dinheiro que deixaram pra nós foi o suficiente pra duas semanas sem pagar as contas básicas.
- Eu vou procurar um trabalho, não se preocupe.
- E  a faculdade?
- Eu não sei.
- Eu também preciso fazer alguma coisa...
- Não. Não precisa fazer nada.
- Como não? Eu não vou ficar de braços cruzados esperando que você faça tudo por mim.
- Se quer mesmo continuar comigo, precisa ficar quieta. Focar apenas na escola...
- Por conta das leis né?
- Até que enfim. - Eric revirou os olhos .
- Ei, tenho uma coisa pra te mostrar! - Aline se lembrou de algo. levantou depressa.
- Posso terminar meu prato?
- Não! - Puxou o garoto pelo braço até o quarto dos pais e abriu o guarda roupas.
- Bom, papai não sabia que eu sabia do esconderijo dele, mas o peguei algumas vezes e... - comentava enfiando a mão no bolso do único paletó pendurado no cabide. - Aqui!
Retirou um maço de dinheiro preso por uma liga.
- Não parece muito pirralha, mas já serve.
- Eu não entendo. Deveria ter mais aqui, da última vez que olhei...
- Então andou mexendo na poupança secreta do pai hein?!
- Claro que não, você tá louco? Eu só fiquei curiosa pra saber quanto dinheiro ele guardava.
- Eles devem ter levado uma parte pra viagem. - Comentou Eric abrindo as notas pra contar.
- E se tiver outro esconderijo? O da nossa mãe talvez?
- Quem sabe? Mas temos tempo pra procurar. Esse dinheiro aqui da pra gente se virar por pelo menos 2 meses.
- Ou três!
- Dificilmente.
- Qual é. É só a gente economizar muito e seguir um orçamento pré definido.
- Acho que é você que tá indo na faculdade de administração.
- Vamos limpar a cozinha?
- Vamos!

- Sabe, podemos vender algumas coisas também.
- Tipo os móveis?
- É.
- Aline, não precisa surtar com isso. Já te falei que darei um jeito.
- Eu só quero ajudar!
- Eu sei o que você quer fazer! Quer encher a cabeça de preocupações e responsabilidades como se isso fosse arrancar a dor que está sentindo, mas não vai conseguir. - Disse olhando fundo nos olhos dela.
- Você não pode saber disso. Preciso ao menos tentar...
- Eu sei sim. Nem mil anos podem tirar de você a dor da perda, mas pode doer muito mais se evitar sentir agora. Ela não vai embora, só acumula pra depois.
- Você fala como se...
Eric jogou o pano de prato que usava pra secar louça e saiu, deixando Aline sozinha.

Ela foi até seu quarto. Olhou em volta, estava uma bagunça. Alê com certeza não a deixaria dormir sem antes deixar tudo impecável. Começou catando algumas roupas sujas espalhadas pelo chão. Trocou os lençóis da cama. Organizou sua escrivaninha. Abriu as cortinas e contemplou o céu escuro com pouquíssimas estrelas. As lágrimas caiam sem sensura.
"Eles só estão viajando." Disse a si mesma. Pegou seu celular e saiu do quarto. Entrou no quarto dos seus pais e se aninhou entre os travesseiros. Adormeceu chorando, como nas outras noites.

Quando acordou pela manhã,não demorou pra perceber que estava sozinha. Pegou o celular para ligar pro seu irmão, quando viu uma mensagem sua.

Fique em casa e se alguém bater não abra nem responda. Volto até o fim do dia.

"Mal ficamos órfãos e ele já instala a ditadura! " Pensou com indignação. Encontrou tapioca com manteiga no fogão e café na garrafa. Comeu, em seguida foi ver as plantinhas. estavam bem regadas, a máquina de lavar roupas funcionando. Voltou pra dentro da casa que aparentemente estava bem, mas Aline precisava de algo pra ocupar seu tempo e acalmar seus nervos. Pegou o aspirador de pó e aspirou os sofás, carpetes e até os colchões dos três quartos. Limpou as fotos e bibelôs da estante. Lavou os dois banheiros, a cozinha até o teto e todo o resto da casa. Já era mais de 15:00hs quando acabou de secar o chão e recolocar alguns móveis de volta no lugar.
Quando estava no banho ouviu a campainha tocar repetidas vezes. Eric sabia que alguém viria? Sabia quem era?
De repente seu celular tocou. Era a vizinha.
" Atendo ou não atendo?" Optou pela segunda opção. Ligou pro seu irmão.
- Eric, onde você está? - perguntou sussurrando.
- Na rua, o que há?
- Tem alguém tocando a campainha e agora a vizinha acabou de me ligar.
- O que ela queria?
- Eu não atendi. Inclusive ela está ligando de novo!
- Ela quer saber se está em casa. Ligou pra mim minutos atrás.
- E o que você disse?
- Que sim, mas já me arrependi. Diga a ela que está na casa de uma amiga, mas não cita nomes.
- Mas você já disse que estou aqui.
- Diga que eu não sei que você saiu.
- Ela tá ligando outra vez.- Pois atende.
Eric desligou e Aline pode atender a mulher.
- Aline?
- Oi vizinha, desculpa não atender de primeira. Minha amiga estava usando meu celular.
- Onde você está?
- Porque tá me perguntado isso?
- Eu já toquei a campainha até cansar e você não aparece.
"Ah, então era a senhora..."
- Hummm. É que eu meio que não estou em casa.
- Acabei de falar com seu irmão. Ele disse que você está.
- Pois é. Ele mandou eu ficar, mas eu... Por favor não conta pra ele. Eu não aguentei ficar sozinha e vim pra cá.

Aline se sentiu mal por mentir pra mulher que os ajudava tanto, mas sentiu alguma desconfiança em Eric, então preferiu seguir os instintos dele. Não demorou muito, ele estava de volta, tomou o cuidado de vir pela outra direção da rua evitando passar pela porta da vizinha prestativa. Ela sempre o abordava. Dessa vez que escapou. Entrou em casa e logo percebeu em que Aline se ocupara o dia todo.
A encontrou comendo cookies com um copo de leite.
- Aposto que é seu almoço. - Comentou antes de passar pro quarto.
- Boa tarde pra você também e sim, meu dia foi ótimo e o seu? - Provocou Aline.
- Não muito bom. - respondeu ao retornar, - Descobri que é impossível arranjar um emprego formal se não tiver um responsável maior pra assinar um termo de autorização.
- sinto muito, mas veja o lado bom, em menos de dois meses você não terá mais esse problema.
- É, mas não é uma garantia de que encontrarei emprego com facilidade. - sentou ao lado dela e pegou um cookies
- Tenha fé. - pôs a mão sobre o ombro dele. - Hein, você viu a vizinha?
- Não.
- Como conseguiu? - Brincou.
- É segredo.
- Me senti mal em mentir pra ela, sei lá, já nos ajudou tanto.
- Não se sinta mal, nem todo mundo é quem parece ser.
- Você sabe de algo que eu ainda não sei?
- Não. Só precaução mesmo.
- Sei. - Aline não se deu por convencida, mas mudou de assunto.
- Vou voltar pra escola amanhã.
- Tem certeza de que está pronta?
- Tenho. Eu preciso seguir em frente. E na escola tenho meus amigos... Eu quase pirei aqui hoje.
- O Will e a Madá podem vir quando quiserem. Nem precisa me dizer.
- Obrigada. Mas, e você? O que fará amanhã?
- Um dia por vez pirralha. Já é o bastante.

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