Pedido de socorro

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- Bom dia!
- Bom dia Eric.
- Vem tomar seu café. - convidou colocando duas xícaras sobre a mesa. Havia preparado cuscuz com queijo, leite com café e mamão em pedaços.
- Valeu! Eu era acostumada a acordar e ter a mesa pronta, preciso reprocessar que agora é tarefa minha.
- Pode deixar como minha tarefa por enquanto.
- Está fugindo do meu dom culinário não é?
- Claro que não. Inclusive, tirei o frango do congelador pra você fazer no almoço.
- Vai pra faculdade também?
- Não. Vou fazer uma diária com um conhecido meu.
- Diária de que?
- Nada demais.
- Isso não é resposta Eric.
- Vamos tirar entulhos de um terreno.
- Ah sim. Então devo entender que não vai deixar a faculdade de vez.
- Tenho 5 dias de luto oficial pra pensar nisso. Agora tenho que aproveitar que não preciso escolher e vou trabalhar. Tchau. Não se atrase pra escola.
- Consertou seu pneu?
- Sim.

Quando desceu na porta da escola, Will não a esperava como sempre fazia.
"Caramba, nem avisei eles!"
Verificou o celular, estava lotado de mensagens no WhatsApp e no Facebook havia trocentas mensagens de condolências pela sua perda, nem se deu ao trabalho de olhar essas últimas. Ligou pro amigo.
- Oiê.
- Oi Will, cadê você?
- Tô na escola, porque?
- Eu tô aqui também.
- Fico feliz que tenha voltado e admiro sua força.
- É, eu também.
Em dois tempos os três estavam reunidos no fundo da sala aguardando o início da aula.
- E aí, o que fez ontem? Não respondeu nossas mensagens.
- Desculpem amigos, eu estava fazendo faxina, acabei cansada, nem lembrei de celular.
- Tá tudo bem.
- Temos trabalho de geografia em grupo, já estamos fazendo, nem precisa de preocupar. - avisou Will.
- De jeito nenhum. Faço questão de contribuir.
- Como você quiser.
A professora chegou. Deixou seu material na mesa e veio na direção deles.
- Oi Aline, eu soube do ocorrido e lamento muito.
- É... - Aline abaixou a cabeça.
- Saiba que pode contar comigo se precisar conversar, ou qualquer outra coisa que esteja ao meu alcance.
- Eu agradeço professora.
- Depois você passa no orientador, ele quer conversar com você.
- Claro.
Aline ficou visivelmente irritada aos olhos de Will que já a conhecia bem.
- O que há de errado Aline?
- Isso é uma droga! Todos me tratando como uma pobre coitada. Todos me olham com pena. Eu odeio isso.
- Talvez você devesse ir pra casa, ainda é muito cedo....
- Não Will, não é cedo, eu não... Eu estou bem. Vamos mudar de assunto tá.

Naquele dia, ela não saiu pro intervalo. Pegou o caderno de Will e copiou as atividades perdidas. Pediu que seus amigos saíssem como de costume alegando que eles a distrairiam. Evitou contato visual com os alunos que entravam e saíam da sala. Totalmente isolada.
Todos os professores que entravam a cada mudança de aula vinha cumprimentá-la e dizia basicamente as mesmas palavras.
Antes que começasse a última aula, Aline se levantou sem qualquer aviso e saiu. Seus amigos não a impediram nem disseram nada, assim como o professor. Ela não poderia sair da escola sem uma autorização escrita do orientador que ela não queria ver. Entrou no banheiro e se trancou num cubículo que mal cabia o vaso.
Colocou o fone de ouvido e abriu o WhatsApp mas mensagens de sua mãe. Olhou as fotos da viagem, ouviu alguns áudios, todos recheados de recomendações e de entusiasmo pela viagem. Não importa o que tenha acontecido, eles estavam muito felizes e mais unidos que nunca. Os meses anteriores haviam sido difíceis com toda a história da falência da empresa, mas Heitor havia começado uma nova etapa, um novo emprego recolocou as coisas nos eixos entre os dois.
Aline foi interrompida pela ligação de Will.
- Onde C tá?
- No banheiro. - Abriu a porta e se deparou com Madá que a recebeu num abraço achonchegante.
- Eu nem sei o que falar...
- Não precisa Madá! Não tem que dizer nada. Só... Não me deixa sucumbir.
- Não deixarei. Prometo.
- Tá, vamos ou perderei a van.
- É.
- Você pode ir pra minha casa hoje? Pra fazer o trabalho.
- Ah, Claro, vamos combinar com o Will
- Você pode dormir lá, o que acha? Pede pra sua mãe.
- Ah, acho que não vai dar.
- Por que não?
- Tenho que preparar o jantar e colocar umas coisas em ordem.
- Ok. Outro dia então.
- Vou ver.
- Eita, olha a van, está entrando o último. Deixa eu correr. Beijo, beijo amiga.
- Beijo.
- Ei, e aí? Como ela tá?
- Está tentando ser forte Will.
- Eu não consigo nem me colocar no lugar dela.
- Nem eu.
- Deve ser uma barra quando entra em casa e eles não estão. Ela deve se sentir sozinha.
- Com certeza. Lá em casa ela chorava o dia todo e a noite também.
- Nossa!
- Sabe, ela acabou de me pedir pra gente ir fazer o trabalho lá,  mas não posso.
- Porque não?
- Minha mãe não deixa. Disse que não tem nenhum maior responsável lá e a qualquer momento a assistência social bate na porta deles junto ao conselho tutelar. Se me pegar lá, mamãe estará em mals lençóis.
- Eu não vou abandonar minha amiga numa hora dessas. - Will falou com certo desprezo.
- Não estou abandonado. Mas não posso causar problemas pra minha mãe. Eu estaria ferrada!
- Não se preocupe, eu vou fazer o trabalho com ela. Até mais!
Will se despediu e pulou na sua bike. Sua casa não era muito longe da escola.

Quando Aline desceu da van, viu de cara a vizinha chegando no seu portão.
- Vizinha.
- Olá Aline. Já voltou pra escola?
- Acho que sim.
- Como foi lá?
Fez a pergunta da sua mãe e isso foi como cutucar uma ferida aberta.
- Tenho que entrar. Até mais.
- Isto aqui é pra vocês.
Estendeu um envelope branco.
- O que é?
- A assistência social esteve aqui mais cedo.
A resposta a fez estremecer.
- Porque está assustada. Você já deveria esperar menina!
- Não tão depressa. - Olhou firme pra vizinha e recolheu o envelope. - Obrigada.
Fechou o portão deixando a mulher do lado de fora.
Caminhou segurando o envelope com as duas mãos. Sentiu cheiro de comida.
- Mãe?!
Eric apareceu na porta da cozinha a tempo de ver os olhinhos esperançosos da irmã que em segundos se desfizeram em tristeza.
- Eric. - constatou com a voz fraca.
- Não fique constrangida. Eu também entro em casa com essa mesma esperança.
- Porque está aqui? Achei que...
- Fui dispensado.
- por que?
- Eu ia substituir o cunhado dele que resolveu aparecer de última hora.
- Ouh, sinto muito.
- O que você tem aí? - indicou o envelope.
- Ah, isso. É da assistência social. A vizinha recebeu e acabou de me entregar. - Entregou a ele.
- Vamos ver o que querem. - Eric sentou-se e rasgou o envelope.
- O que diz?
- Calma. Deixa eu entender aqui... Hum, está dizendo que virão fazer uma visita e se não tiver um maior responsável, seremos levados para um abrigo até que algum parente reclame nossa tutela.
- Abrigo? Não somos moradores de rua. Temos uma casa!
- Abrigo é o nome que eles dão a um orfanato.
- O que?
- E o pior, eles virão amanhã às 8hs.
- O que a gente faz?
- Eu não sei!
- Podemos ir pra casa de algum dos meus amigos!
- Não é tão simples. Aqui diz que eles deverão entrevistar o maior responsável e iniciar o processo de tutela.
- É. Eles não topariam. Estamos perdidos!
- Calma. Tente respirar sem pressa.
- Tá. E agora?
- Eu não sei.
- Vamos tentar a tia.
- A tia vovó? - perguntou com descrença.
- Eu sei que as chances são pequenas, mas é o que temos.
- Tá. Você tem o número dela?
- Não, mas vou procurar agora mesmo.
- Vamos almoçar primeiro!
- Não, o tempo está correndo contra nós. Vou ver a agenda da mãe. Deve ter em alguma página.
- Vou ver a do pai.
Folhearam até a última página e nada. Eric jogou a agenda pro lado.
- É inútil ninguém guarda número de telefone em cadernos mais.
Aline continuou na mesma agenda com mais cautela.
- Achei!- Deu um pulo. - Olá aqui. Tia Maria. Pega, fala com ela. - entregou seu celular com o número discado.
- Não. Melhor você. Ela não vai com minha cara.
- Besteira. - Aguardou alguns instantes...
- Alô?
- Oi, tia Maria.
- Sim?
- Sou eu, Aline, filha da Alessandra.
- Ah sim, se está me ligando pra avisar do acontecido, eu já soube.
- Desculpe não ter ligado antes tia.
- Não se preocupe. Cheguei ontem da Europa.
- Ah...
- Imagino que não foi só por isso que me ligou não é mesmo?
- Na verdade não. O caso é que a senhora deve saber que não temos nenhum outro parente além da senhora.
- Sim, e então? Não espera que eu fique com você, espera?
- Tia, acabamos de receber uma notificação da assistência social. Eles vem aqui amanhã pela manhã e se não tiver um maior responsável, seremos levados pra um abrigo.
- Seremos?
- Sim, o Eric ainda é menor de idade também.
- E como estão lidando com a questão do seguro, a pensão e o inventário dos bens?
- Não podemos fazer nada sem um tutor legal.
- Vocês estão em mals lençóis, tenho que dizer viu.
- Então não pode nos ajudar?
- Verei o que posso fazer. A que horas eles disseram que viriam?
- Às oito.
- Está bem. Vou pensar. Até mais menina.
- Até.
- O que ela disse?
- Que vai pensar. - Respondeu com poucas esperanças.
- Vamos almoçar.
- Não consigo. Não paro de imaginar o que vai ser da gente se nos levarem.
- Não pense tanto. Vem comer.

A tarde
- Oi Will! Que bom que você pôde vir.
- Alguma novidade da tia lá?
- Nada até agora. Não liguei mais, ela pode acabar se incomodado.
- Eu até falei com minha mãe se ela poderia ajudar, mas ela disse que não é nada simples e seria uma responsabilidade que ela não suportaria carregar.
- Foi muito gentil da sua parte, mas não precisava pedir. Faremos dar certo.
- Com certeza.
- Então vamos ao que interessa!
- O lanche?
- Palhaço! - de um tapinha no ombro dele.

 

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