O último discurso

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Cortinados estampados com as cores da bandeira estadunidense preenchiam o salão apinhado por mesas redondas cercadas com a elite nova-iorquina. Haviam até mesmo alguns políticos vindos diretamente de Washigton para oferecer suporte ao Senador Shaw. Era época de eleição, todos estavam em polvorosa. 

— Senhoras e senhores — anunciava o mestre de cerimônias, fazendo jus à noite de gala com seu terno e gravata borboleta branca e cabelo escovado para trás —, esta noite, o nosso convidado principal dispensa apresentações... — Virou-se para encarar o gigantesco retrato do busto do Senador, que olhava pensativo para o horizonte, seguidos pelos dizeres: O futuro da América. — Ele tem sido mencionado como futuro presidente — Silêncio. — E se não acreditam em mim, leiam o jornal do pai dele...

Os convidados riram, virando-se para o Sr. Shaw, seu pai, que acenou discretamente com um sorrisinho. Lagdon, por outra lado, sentava-se completamente alheio ao decoro, entendiado com toda aquela pompa desnecessária. 

— Senhoras e senhores, recebam com vocês, o Senador de Nova Iorque — bradou o mestre de cerimônias —, Henry Shaw! 

Palmas e vivas, aplausos entusiásticos da plateia enquanto magnífico homem se aproximava do microfone. Acenou com seu sorriso perfeito para a multidão, agradecendo. Seus olhos encontraram com os de seu pai, e somente o velho Sr. Shaw pôde sentir o nervosismo do filho escondido em seus olhos escuros. 

Do lado de fora, porém, uma coisa muito rápida corria entres os carros. A noite era fria e molhada, as calçadas pouco movimentadas. Os no-maj nem reparavam na aproximação daquela criatura invisível, mas uma passante pôde pressenti-lo a duas quadras de distância. 

Um vento fustigou os cabelos de Tina, que galgava apressada em direção ao Macusa. De repente, estancou,  ouvindo baques ao longe, enquanto que os postes de iluminação pública apagavam um após o outro. Sentiu o medo tomar-lhe conta...

Seria mais uma criatura do Sr. Scamander? 

A escuridão consumiu-a quando o poste mais próximo se desligou com fagulhas elétricas. Tina abraçou a maleta, em pânico, suspirando contra noite gelada enquanto seus olhos ardiam em lágrimas de pavor. 

— É bem verdade — continuava o Senador, no City Hall, mal sabendo o que viria a seguir. — Fizemos algum progresso. Mas não há recompensa para o ócio. — Logo abaixo, o Sr. Shaw admirava seu filho preferido, inflado pelo orgulho que projetava seu queixo e pescoço enrugados. Seu sucessor, seu primogênito. Por que Lagdon não poderia ser como o irmão? Sentava-se ao lado como um qualquer, bufando a cada palavra proferida pelo irmão. Desde criança fora assim... — Assim como os odiosos saloons, toda bebida alcoólica foi banida por nós...

Uma interferência magnética no áudio interrompeu sua fala. O Sr. Shaw olhou por cima do ombro, o salão em pleno silêncio (quase como se esperasse), focado no antigo órgão dourado. O instrumento centenário se erguia com seus canos de metal, um sopro rouco saindo dos buracos ao longo dele, como se um enfermo estivesse preso ali. 

Um fantasma. 

— Agora — persistiu o Senador — , as casas de jogos e salões particulares...

Nova interferência, dessa vez seguida pelo apagão súbito dos lustres do salão. Os convidados se agiatram, murmurando entre as mesas. Aquilo não poderia estar acontecendo em um momento tão importante quanto aquele...

Lagdon, assim como o pai, fitou o orgão, que produziu um assobio agudo que foi aumentando, aumentando... até se dissipar em um breve momento de silêncio agoniante. Apenas os feixes azulados da noite iluminavam o salão, trazendo com eles uma sensação entorpecente e enregelada, seguida pelo pânico. 

— O que é isso? — murmurou alguém na plateia. 

Então, veio a explosão. Uma ventania violenta escancarou as portas de vidro da entrada; os lustres balançaram, tilintando e quebrando sobre os braços nus das senhoras. Mesas foram arremessadas para o lado e os que estavam sentados nas fileiras o meio mal perceberam o que os tinha jogados a metros no ar. Os gritos tomaram conta do comício. 

Henry recuou, sem saber o que fazer...

O Sr. Shaw, que havia caído quando sua mesa vizinha fora arremessada, só teve tempo de ver o filho novamente quando ele já fora elevado no ar por forças invisíveis. Sua forma se perdeu enquanto a escorregava pela bandeirola tremulante com seu rosto. Estrebuchando, Henry Shaw deu seu último suspiro no ar.

Como se estivesse sendo atacado por uma víbora, um felino... 

BUM! O corpo despencou com um baque agoniante de carne e ossos se partindo. O crânio que deveria ter se partido...

Todos gritaram. 

A bandeirola se remexeu, rasgada em vários pontos, mais especificamente no rosto de Henry, que não era mais discernível na pintura...

Assim como seu próprio rosto mundano. 

Atordoado, o Sr. Shaw se aproximou do corpo estendido de braços abertos, quase caindo na beirada do palco. O lado esquerdo não passava da figura seca de uma múmia, envelhecido e descarnado. Não havia sangue. Seus olhos focavam o nada, sem vida. 

O pai se ajoelhou ao lado do filho, sem conseguir entender se aquele era mesmo seu filho, o que havia acontecido e por que ele não o respondia. 

Suspirando, Lagdon encarou o órgão desmontado, os convidados que fugiam para fora do salão. 

Mal pôde ver o corpo do irmão, devido à pequena multidão que se encurvava em sua direção. 

Ele sabia muito bem que tinha sido responsável. 

— Bruxas. 

Animais Fantásticos e Onde Habitam - O LivroOnde histórias criam vida. Descubra agora