Os Barebone na Torre Shaw

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Um longo salão em estilo Art Deco acomodava  uma série de mesinhas atulhadas com máquinas de escrever e linhas telefônicas, enquanto jornalistas andavam apressados para atender as ligações que preconizavam denúncias de anônimos ou informações dos repórteres que ainda circulavam pela cidade, trazendo as últimas notícias do dia que poderiam ou não entrar na edição matinal do dia seguinte, do Jornal Shaw. 

A linha rosa-arroxeada do início da noite adentrava pelos janelões que davam para a fachada do prédio altíssimo e produzia uma sonolência fatigada de final de expediente. Todos sabiam, é claro, que estavam longe de terminar o trabalho. O discurso do Senador Shaw deveria ser coberto com maestria pelo maior bajulador de todos: o jornal de seu pai. 

À esquerda, as portas de um elevador deslizaram e abriram caminho para um homem loiro e engravatado que apontava para o salão como se conduzisse um tour turístico. 

Mas a família Barebone estava longe de se entrever em passeios por Manhattan que divertissem ou não se aplicassem aos seus objetivos fervorosos. 

- ... e essa é a nossa redação - disse Lagdon Shaw. Carregando uma pasta, ela abriu o braço livre, dando-lhes permissão de passagem. A família, porém, era tão vagarosa e desconfiada que pareciam mais um bando de pássaros pálidos, andando um colado ao outro. Modesty olhava com certo pavor para o teto acima, com os grandes relógios quadrados que marcavam perto das 18h; Chastity andava ao lado de Credence, que retirou o chapéu, olhando para baixo. Ele não gostava de multidões, pelo menos não daquelas que não poderiam escapar com facilidade, como fazia nos dias de comício de sua mãe. 

Mary Lou seguia com a líder resoluta do grupo. 

- Venham comigo. Olá, como vai? Abram caminho para a família Barebone - chamou Lagdon, visivelmente tentando passar certa autoridade enquanto desfilava pelos redatores e jornalistas. -  Aqui estão finalizando a edição para a impressão, como costumam dizer. - Os olhares se voltavam o estranho séquito de crianças pálidas e sua tutora, mas nem Lagdon nem Mary Lou se incomodaram com isso. 

Um homem calvo se deteve no caminho de Lagdon, apreensivo. 

- Sr. Shaw, por favor, ele está com o senador. 

Lagdon sorriu. 

- Não faz mal, Barker. Eu quero ver meu pai. - Sem ter como contê-lo, Barker se apressou para se desculpar quando o Shaw caçula abriu as grandes portas que davam para o escritório do presidente, com uma vista esplendorosa para a grande Nova York. O baque assustou os dois homens que ali estavam e Lagdon logo se voltou para o mais velhos deles, o cabelo grisalho bem penteado para trás. - Me desculpe, Sr. Shaw, mas o seu filho insistiu...

- Pai - silenciou-o Lagdon -, você vai querer ouvir isso. - Se deteve  a espalhar uma coleção de fotos sobre a mesa do pai, animado. Todas detalhavam os espaços destruídos nos bairros residenciais, na manhã daquele dia. Todos na redação, porém, pensaram se tratar de uma explosão de gás, o que não conferiu uma nota de muita importância na redação, nem precisava chegar aos ouvidos do chefe, que tinha outros problemas em mente, como bem aparentava.  - Essa vai ser a manchete. 

O descontentamento do senador, seu irmão mais velho, foi latente. Enquanto isso, o pai apertou os olhos, inspirando paciência. 

- Seu irmão e eu estamos ocupados, Lagdon. Trabalhando na campanha dele, não temos tempo para isso - disse, como se o filho houvesse acabado de lhe trazer um desenho em hora inapropriada. 

Lagdon não ligou. 

- Esta é Mary Lou Barebone, da Sociedade de Preservação de Nova Salém - apontou, enquanto o séquito adentrava pelas portas duplas. - E ela tem uma baita histórias para você. 

Percebendo que não teria com sair daquela situação, o Sr. Shaw se levantou com pesar de sua poltrona e repousou seu copo de conhaque, vencido. 

- Ah, é mesmo, é? 

O Sr. Shaw encarou-os brevemente, mas apenas Modesty e Chastity retribuíram o olhar de início, mais curiosas e amedrontados do que de fato entusiasmadas em conhecê-lo e partilhar suas histórias. 

- Estão acontecendo coisas estranhas por toda a cidade - continuou o filho mais novo, cada vez mais sem fôlego. - E as pessoas que estão por trás disso não são como você e eu. - Uma pausa, como se esperasse que seu pai o indagasse, curioso. Ele não disse nada. - Isso é bruxaria, não percebe? 

- Lagdon... - O Sr. Shaw inspirou novamente. 

- Ela não quer dinheiro. 

Mary Lou olhou-os apreensiva, abrindo a boca para falar. 

- Ou a história dela não vale nada, ou ela está mentindo quanto ao custo... - disse o pai, agora tomando as rédeas de um editor, explicando ao seu aprendiz. - Ninguém passa uma informação valiosa de graça, Lagdon...

- Tem razão, senhor - dessa vez, Mary Lou falou. - O que queremos é infinitamente mais valioso do que dinheiro. É a sua influência. - Shaw caminhou em sua direção, disposto a ouvi-la pela primeira vez, mas não decididamente contrariado. - Milhões de pessoas leem seu jornal e precisam ser alertadas desse perigo. 

- A-aquela confusão toda que teve - lembrou-o Lagdon -, dentro do metrô. Vejas as fotos. 

O Sr. Shaw, educadamente, voltou-se para o filho, falando para que apenas ele pudesse ouvir. 

- Gostaria que você e seus amigos saíssem.

- Não... Você vai deixar passar esse furo? Veja as provas, papai. - Ele não mais soava como um jornalista animado, mas como um adolescente em fúria. Era de se imaginar que a convivência familiar não fosse muito diferente. O senador se remexeu no sofá, cada vez mais incomodado com a mesquinhes do irmão. Modesty abaixou os olhos. 

- É mesmo? 

- Lagdon! - interviu o senador. Levantou-se com autoridade e se pôs atrás do irmão, praticamente como se ameaçasse humilhá-lo como faria se fosse mais novo, empurrando-o porta afora. A revolta guardada do caçula não permitiu que ele ouvisse, encarando o pai, colérico. O Sr. Shaw, contudo, só tinha olhos para o filho mais velho. - Ouça o papai e saia. Leve esses esquisitos com você - murmurou, bufando. 

- Esse escritório é do papai, e não seu! - gritou Lagdon. Os Barebone se viram vencidos, mas envergonhados ainda mais pelo pobre Lagdon. 

- Basta! - tentou o Sr. Shaw. 

- Toda vez que eu venho aqui... 

- Já chega! - bradou o pai. Com um movimento circular, apontou para que a família desse meia-volta. - Obrigado. 

Lagdon apertou a mão contra os olhos, cansado. 

- Nós esperamos que o senhor reconsidere, Sr. Shaw - disse Mary Lou. Não soava exatamente como uma ameaça, mas seus olhos azuis lacrimosos pareciam esconder uma lâmina carregada por uma lunática contida atrás das vestes escuras. - Não é difícil nos achar. Enquanto isso, obrigada pela atenção. 

Um silêncio vergonhoso perpassou por dois segundos. 

Modesty encarou o senador, apertando os lábios pequenos e rosados. 

Já estavam saindo da sala quando o filho mais velho chamou. 

- Ei, menino! - Abaixou-se e recolheu um dos folhetos sobre a Marcha dos Novos Salemnianos. - Deixou algo cair. - Estava tão perto de Credence, que persistia em fitar os próprios pés, que ninguém viu quando ele amassou o folheto e o ordenou: - Jogue isso no lixo, que é o lugar de todos vocês. 

Credence saiu observado por todos e pegou na mão de Modesty, que apoiou aquela figura frágil como se possuísse uma força mil vezes maior do que sua idade podia conferi-la. 

Animais Fantásticos e Onde Habitam - O LivroOnde histórias criam vida. Descubra agora