box of souvenirs

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Desde que voltei da Europa com meu pai, eu iniciei um projeto de doações. Não quero ser uma Sinclair acumuladora. E, de acordo com que as memórias do acidente têm voltado, fica nítida a necessidade de me livrar de tudo o quanto antes.

Eu era uma pessoa que gostava de coisas bonitas, assim como Índia. Como todos os Sinclair. Mas, desde que as brigas pela herança começaram, o acúmulo de itens materiais sem utilidade se tornou repugnante.

— Beleza é uma utilidade válida. — minha mãe argumentava para ter um motivo a guardar tanta tralha em nossa casa de Vermont. — Cria um senso de pertencimento, de história pessoal. Até mesmo prazer, Lola. Já ouviu falar de prazer?

Escrevo com uma caneta de ponta grossa na caixa grande de papelão que encontro no sótão: PARA O EXÉRCITO DA SALVAÇÃO.

Sei que existe um em Edgartown. Bastava apenas levar tudo para lá depois.

Doação: um exemplar de Orgulho e Preconceito, que li no verão dos quatorze. Inclusive, Calum interrompia sempre minha leitura e foi exatamente nesse dia, morrendo de frio em um passeio de barco, que eu percebi que estava infinitamente apaixonada por ele.

Doação: desenhos de infância, gravuras de botânica. Feitos em aquarela. Também embalo meus pincéis e bisnagas de tinta que ainda estão cheias. Talvez, alguém no Exército da Salvação, goste de pintar.

Doação: uma foto da vovó Tipper, em um evento beneficente em Martha's Vineyard, usando um vestido de festa e segurando um leitão.

Tiro a foto da moldura e escrevo em seu verso:

Essa é minha avó Tipper, que morreu do coração. Ter uma foto dela não vai mudar nada para mim. Mas caso você, que recebeu minha doação, a ache bonita, pode manter a foto no porta-retrato.

Doação: Vida Encantada, de Diana Wyne Jones.

É uma das histórias que minha mãe lia para mim e para Calum quando tínhamos apenas oito anos. Já reli várias vezes, desde então. Quero que Calum possa ter a mesma experiência, por isso separo aquela doação para presenteá-lo.

Abro o livro e escrevo na folha de rosto:

Para Calum, com tudo, tudo.
Lola.

Assim como ele havia escrito no livro que ganhei em Edgartown, no dia em que estávamos esperando os sapatos de Lola para entrar na lanchonete e Calum saiu correndo de uma livraria.

Meu quarto agora está vazio. Além da mobília, tenho apenas a roupa de cama, com um travesseiro. O notebook na escrivaninha e uma caneca com três canetas coloridas. Também tenho uma escova de dentes. É o básico, o que realmente preciso. Mantenho apenas meus post-it de informações e os bilhetes que recebia de Calum, colados na cabeceira da cama.

As prateleiras estão vazias. Nenhuma foto, nenhum pôster. Nenhum brinquedo ou livro antigo.

Fecho as caixas com fita adesiva e, na menor delas, deixo guardado o que tenho de mais importante. É o que quero compartilhar com os Mentirosos.

Mas, antes, vou para Red Gate. A casa está vazia e silenciosa. Subo as escadas e ando até o quarto que costumava ser de Calum e bato na porta.

Ninguém responde.

Bato de novo, depois abro.

Está organizado, como se não estivesse sendo usado. A cama está feita e as cortinas fechadas.

De qualquer modo, ele não está lá. Deve estar em Cuddledown com os outros Mentirosos.

Deixo o livro sobre o travesseiro.

we were liars - cthOnde histórias criam vida. Descubra agora