Capítulo I

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A entrada está lotada deles.

Não há jeito de Kate passar sem ser vista. Todos os 30 pares de olhos estão lá, só aguardando algum estímulo, algum sinal de movimento. Eles perambulam entre carros abandonados no estacionamento do Walmart, andando em círculos ou parados no sol em estado de hibernação. Mas Kate tem um cérebro que funciona, o que já é uma vantagem sobre eles.

— Fica aqui — ela bate o dedo no muro — Me chama se acontecer alguma coisa.

O corvo inclina a cabeça de um lado e depois do outro, piscando como se entendesse perfeitamente o que Kate diz, e belisca as pontas do cabelo dela.

— Volto logo.

Kate acaricia as penas pretas do peito do pássaro e suspira. Ela engatinha por detrás do muro de tijolos na direção das latas de lixo que estavam apoiadas ali. Todas as sacolas estavam reviradas e fediam, mas não é o conteúdo delas que interessa a Kate.

Como se erguesse um bebê que dorme, Kate pega uma das tampas de latão e se esconde atrás do muro novamente. O som do metal arrastando no asfalto faz com que algumas cabeças no estacionamento comecem a virar, procurando a origem do barulho.

Kate consegue observá-los de longe. Ainda são nojentos e assustadores.

Com a tampa debaixo do braço, Kate se esconde atrás do Fiat azul ali do lado e tenta se manter calma e alerta. Pelo vidro quebrado ela espia de novo: eles continuam vagando no estacionamento do mercado, tendo esquecido o barulho anterior.

Cree a observa do muro. Kate sorri para ele e suspira fundo. Ela segura a tampa pela beirada, ergue-se do chão e a lança como um frisbee. O negócio voa longe — Kate mirara na direção da rua de trás, onde estavam alguns carros abandonados. A tampa voou por cima do telhado da casa e bateu violentamente contra os carros e o chão, fazendo um estrondo ecoar nas ruas e entre as casas daquela cidadezinha fantasma.

Kate abaixa novamente e rola para debaixo do Fiat, vendo e ouvindo os mortos gritando e correndo (ou andando o mais rápido possível) na direção do barulho como uma manada de búfalos desesperados. Ela fica ali pelo que parece uma eternidade, vendo os pés, calçados ou não, passando correndo ou se arrastando logo ali na frente dela. Um braço cinza e podre cai no chão e se espatifa, já parcialmente decomposto e cheio de moscas. Fede como uma carcaça ao sol, o suficiente para fazer Kate engasgar.

Ela só tem coragem de espiar na direção do mercado depois de cinco minutos deitada na rua. Um buraco se abre no joelho da calça quando ela rasteja no asfalto áspero, olhando atentamente ao redor. As vozes estão longe. Quando Kate ergue a cabeça, vê o estacionamento livre.

Kate sorri e olha na direção do muro, e depois para o céu. Cree voa em círculos lá no alto. Ela já deveria saber que ele prefere ver as coisas de cima.

Afastando todo o medo no estômago, Kate agarra a alça da mochila e a joga no ombro, já correndo pelo estacionamento na direção da entrada da loja. Os portões de metal de segurança estão abaixados, mas tortos por causa do pânico pré-vírus. Felizmente ela consegue se espremer entre a parede e o portão.

A loja é pequena, o que condiz com o tamanho da cidade. Provavelmente já haviam levado tudo de útil, mas não custava tentar. Kate consegue ver um pouco por causa da claridade que vem do portão destruído e algumas janelas altas. Está silencioso. Kate só consegue ouvir sua própria respiração.

É melhor ser rápida. Desviando dos cacos de vidro e das pilhas de lixo no chão, Kate vasculha os corredores da loja atrás de comida. Felizmente a loja é pequena e tem poucos corredores. Por pura sorte ela consegue achar pacotes de bolacha no chão, duas latas de pasta de feijão prestes a vencer, um pote de café solúvel, meio pacote de macarrão e um saco de arroz escondido embaixo de um freezer.

Kate enfia tudo na mochila. Com cuidado, ela explora o resto da loja e pega chicletes e balas nos displays dos caixas. Ela procura embaixo dos outros freezers e só acha uma caixa de cereal. Vencido.

A caixa volta para a prateleira vazia. Kate suspira enquanto enfrenta um de seus piores inimigos: a data de validade das coisas. Tudo o que sobrou no mundo estava começando a vencer ou já tinha vencido faz tempo.

Ali atrás do açougue há uma porta. Kate imagina que seja o local de descanso dos funcionários, e isso vale a pena checar. De ouvido na porta ela não escuta nada dentro, então empunha o pé-de-cabra na frente do corpo e decide entrar.

É um corredor comprido com três portas: uma na direita, outra na esquerda e uma na ponta. Está escuro e há sangue no chão e na parede. Kate respira fundo e só consegue sentir o cheiro ruim que paira na cidade há anos. Não parece haver nada por perto.

Não importa. Kate precisa achar calçados do tamanho certo para Mia. Ela tem crescido muito rápido.

Kate abre a porta da esquerda o mais silenciosamente possível. É um banheiro imundo. Ela vai até a pia e gira a torneira, mas só é recebida por água preta fedida espirrando na cerâmica branca e descendo pelo ralo. No espelho, ela consegue se ver por entre as rachaduras: cabelo sujo e bagunçado, o corte na testa, as olheiras escuras. Parece ser mais velha do que é. E está exausta, só quer ir para casa.

Ela volta ao corredor. A porta da direita revela um vestiário com mesa e cadeiras para descanso, mas as cadeiras estão destruídas e tombadas e a mesa tem uma maçaroca verde em um prato. Sangue na parede. Os armários estilo high school estão tortos e alguns têm as portas abertas. Vazios. Os que estão fechados têm cadeado e seria impossível abri-los sem chamar atenção das coisas lá fora.

Decepcionada e frustrada, Kate segue para a última porta. Há sangue na maçaneta. Ela a gira, devagar, ouvindo o barulho de ferrugem e ficando tensa. Kate ergue o pé-de-cabra e espia para dentro: pela fresta é possível ver uma mesa de plástico contra a parede branca e caixas de papelão empilhadas nela. A janela está fechada pela cortina e tem papel por todo o chão, alguns estampados com uma pegada sangrenta. Ela empurra um pouco mais a porta, achando aquele sangue fresco demais; é quando Kate vê um pacote de Doritos aberto e duas latas de refrigerante. O Doritos ainda tem a clássica cor radioativa.

Kate abre a porta, avistando um pacote de beef jerky pela metade. Seguindo a trilha de lixo, Kate ergue o olhar para o outro canto da sala. O coração dela pula no peito quando percebe que há alguém ali. Alguém vivo.

É um rapaz. Ele está sentado no canto numa pilha de papelão apontando uma arma para ela. Uma mochila preta está aberta aos pés dele. Há sangue pingando de sua camiseta

Kate está em choque. O cara está imundo, mas ela consegue ver que se trata de um rapaz mais ou menos da idade dela, de olhos azuis e cabelo loiro sujo. A expressão dele é séria, especialmente apontando a arma para Kate. A aura dele emana perigo, apesar da aparência frágil e do medo estampado no rosto.

— Hm! — ela abaixa o pé-de-cabra e suspira, aliviada. Uma adrenalina boa a enche por inteiro. — Faz tempo que não vejo outra pessoa viva. Especialmente um homem.


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Observações finais

>> O link da pastinha do Pinterest com referências da história está no meu perfil, na aba conversas! <<

Pra quem não me conhece, escrevo fics de anime. Mas, antes de ser otaka (2012??), escrevi uma história gigantesca sobre zumbis. Então meio que resolvi reimaginar a história e criar novos personagens baseados nos anteriores, já que não tenho nada melhor a fazer na quarentena.

Eu gosto que meus diálogos pareçam reais na minha cabeça, então tenho costume de abreviar "estar/estou/vou/para" para "tá/tô/vô/pra".

Não tenho costume de postar histórias que não estão prontas justamente pelo receio de abandonar o projeto e ele ficar pela metade na internet. Mas me sinto otimista, então resolvi subir os capítulos escritos mesmo a história ainda existindo 95% na minha cabeça.

*** É PROVÁVEL QUE EU VOLTE DEPOIS PARA EDITAR INFORMAÇÕES NOS CAPÍTULOS ENQUANTO A HISTÓRIA É ESCRITA PORQUE EU ADORO ME CONFUNDIR E ADICIONAR DETALHES***

Como sempre, deixe um comentário se gostou. Nos vemos na próxima!

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