Kate senta no tapete e chora.
O termômetro na frente dela marca 37°C.
Ela acordou com a máscara azul no chão e agora está morrendo. Sabe-se lá em que momento da madrugada ela conseguiu tirar a máscara do rosto enquanto dormia, mas isso não importa. Nada mais importa. Ela teria uma morte lenta, horrível e dolorosa que nem o resto dos vizinhos; diferente deles, no entanto, Kate está sozinha. O corpo dela vai apodrecer para sempre naquela casa sem sequer um enterro digno. Os outros bilhões de pessoas também morreram sem dignidade nenhuma.
Kate está morrendo de verdade. Depois de ver aqueles corpos na TV, a vez dela tinha chegado e ela sequer tinha alguém para abraçar. Seu pai, sua mãe e sua melhor amiga já estavam mortos faz tempo e ela sequer conseguiu se despedir deles. É o último dia dela na Terra e Kate já havia gastado parte dele chorando no tapete da sala, sozinha e com medo.
Ela não sabe dizer exatamente quando tirou a máscara, mas não deve fazer muito tempo — o corpo dela ainda não tem manchas e não há sinal de outros sintomas. Mas o estômago dói de fome e a cabeça de nervoso.
— Foda-se! Foda-se essa merda!
Kate se levanta do chão e vai até o armário da cozinha. Ela pega uma embalagem de chocolate e enfia tudo na boca, mastigando entre as lágrimas. Ela também engole duas latas de Coca-Cola e as balinhas azedas de Jen.
— Eu me recuso a morrer de barriga vazia, tá ouvindo?! — ela grita para o teto. — Vírus filho da mãe!
Kate lava o rosto na pia e respira fundo várias vezes. É seu último dia de vida, não é? Então ela pode fazer o que quiser.
A primeira coisa é andar pelada pela casa. O verão não estava sendo gentil aquele ano e todas as janelas estavam fechadas mesmo... A segunda é aproveitar que ainda há energia elétrica e colocar música para tocar o mais alto possível na caixa de som. A terceira... Bom, Kate gostaria de pintar mais um quadro antes de partir para sempre. O corpo dela apodreceria e voltaria para a natureza, mas a arte... A arte é eterna.
Kate corre até seu quarto e pega uma tela, o cavalete, as tintas e o pincel. Ela monta tudo no meio da sala, espreme as tintas em sua paleta e fecha os olhos.
A primeira coisa que ela vê é o mar azul ondulando na praia, com as ondinhas quebrando suavemente na areia. No fundo, dezenas de prédios chiques e altos, a redoma branca do estádio Rogers Centere e a torre CN Tower de Toronto contra o céu alaranjado pelo pôr-do-sol. Tão lindo. A cidade ela era tão linda. O coração de Kate aperta de saudades enquanto ela mergulha o pincel na tinta azul e começa a delinear o mar.
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O almoço está pronto. E, sendo bem honesta, Kate acha que está uma delícia. Carne com molho, batatas, arroz e até uma saladinha.
Uma garfada mostra que as batatas estão gostosas demais e deixam um quentinho no coração de Kate. Lágrimas voltam aos seus olhos quando ela se lembra de que aquela seria sua última batata da vida — como um condenado à morte. Ela se obriga a comer tudo e, só de hábito, lava a louça e põe no escorredor. Jamais poderia morrer em paz se a louça estivesse suja; Jen a mataria pela segunda vez no céu.
Céu... É para lá que as pessoas vão, certo? Deus a receberia mesmo que ela tenha duvidado de Sua existência? Mesmo que ela tenha tomado raiva da Igreja e de costumes sem sentido? Teria ela um espacinho no céu para descansar um pouco?
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Mortos Revivem
Science Fiction"Cientistas argentinos descobrem vírus milenar em geleiras da Patagônia" Essa foi a manchete que Kate leu na tarde de 30 de junho. Uma cepa antiga e mutada de vírus da raiva é descoberta na Argentina e se espalha pelas Américas em duas semanas, mata...