Bom, o tempo passou aqui no Jardim de Gaya, e aconteceram algumas coisas...Quando o Sombra acordou, quase revelou quem eu realmente era, mas consegui impedir antes que acontecesse.
Também consegui convencê-lo a voltar a me dar aulas de caça.
Desta vez as aulas vão ser bem mais teóricas...Graças aos seus ferimentos emocionais ele não consegue se recuperar tão rápido. Mau anda e mau fala com qualquer um. Acho que ainda deve ser um pouco difícil para ele ficar em um lugar onde não é tão bem-vindo.
Além disso, ainda continuo sendo babá do Sombra, e isso se tornou uma ótima desculpa para nos encontrar para termos nossas aulas escondidas. O único problema é que em todo resto do tempo, eu tenho que fazer, basicamente, tudo por ele. Ou seja, tenho que ouvir aquele velho gritando comigo vinte quatro horas por dia.
Enfim, agora eu estou com o Sombra dentro da árvore/quarto dele, onde ele está me ensinando a farejar usando as ervas medicinais daqui. Elas tem um cheiro forte, mas não importa o que eu fazia, acabava confundindo os cheiros.
O homem escondeu duas das três plantas e pede para eu acertar qual está atrás das suas costas.- Um... é... Boldo? - Disse com os meus olhos fechados e o nariz para cima tentando facilitar a identificação. O ouvi tirar a erva de trás dele.
- Babosa. - Falou em um tom cansado. - Fala sério, essas duas são muito diferentes! -
- Eu sei! Mas não consigo entender o que está acontecendo comigo! - Comentei saindo da minha posição indo para uma mais relaxada. Me apoiei pelos cotovelos no chão e estiquei as minhas pernas de uma forma largada. - Todas elas tem cheiro de planta pra mim. - Reclamei jogando a cabeça para trás sentindo os meus cabelos acompanharem o movimento. Ouvi ele bufar e encostando na parte de dentro do tronco da árvore.
- Você é tão infantil. - Falou debochando de mim.
- E você é um velho mandão. - Retruquei na mesma moeda. Ele olhou para mim bem sério. - Como você faz para diferenciar essas coisa? São todas iguais para mim... - Disse manhoso. Vi o Sombra bufar mais uma vez.
- Precisa prestar mais atenção nos detalhes, não no todo. - Fiz uma expressão confusa. - Olha, tudo isso vai ter cheiro de planta, são plantas! - Mandei um olhar cansado para ele. - Mas tem detalhes nesses cheiros que diferenciam elas umas das outras, igualzinho as pessoas. - Tá bom, estou começando a entender. - Tenta de novo. -
Me entregou as ervas e eu as levei até o meu nariz respirando bem fundo. Procurei as diferenças, tentei achar os detalhes que o Sombra havia me dito, até que, finalmente, eu disse:
- Desisto! - E me joguei no chão.
- Eu também! - Falou e se jogou do meu lado.
- Desculpa por fazer você passar por tudo isso... - Disse colocando o meu braço por cima dos meus olhos.
- Estou acostumado a ensinar crianças, mas eu tenho que admitir que você é o pior caso que eu já vi! - Mesmo ficando frustrado com o comentário, lembrei de uma coisa que eu vi a um tempo e não tinha falado para ele. Era arriscado comentar, mas eu estava curioso, e acho que ele não estava mais com raiva de mim.
- Sombra. - Ouvi um "Hum?" - Você costumava ensinar o seu filho? - Perguntei tirando o braço da minha cara para ver a reação dele.
- Quem te contou? - Falou se virando bruscamente na minha direção com raiva.
- Ninguém, ninguém! Eu vi ele quando eu estava na ravina e ele disse que era seu filho!! - Me expliquei o mais rápido que pude tentando não repetir a situação de quando eu perguntei sobre a cicatriz.
- Droga! - Falou com a voz tremula voltando a sua posição que estava cobrindo o rosto com as mãos.
Sei que é muito arriscado continuar perguntando, mas eu quero saber.
- Sombra... Por que você deixou o seu filho com aquele cara?... - Caramba, essas palavras não saíram do jeito que eu estava pensando.
- Acha que eu queria isso?! - Ele soltou um grito de fúria muito alto fazendo com que eu desse um pulo.
Tirou as mãos do rosto e ficou olhando para o "teto" com uma expressão raivosa.
- Deixa pra lá... Não devia nem ter começado a esse assunto. - Disse tentando levantar, quando senti a mão do Sombra segurar o meu braço e puxar de volta para o chão.
- Agora você vai ficar... - O tom que ele usou nessa frase foi algo assustador, fez com que eu pensasse duas vezes antes de tentar me levantar de novo.
- Tudo bem... - Disse com a minha voz tremula retirando a mão do Sombra delicadamente do meu braço. - Eu sou todo ouvidos. - Me sentei ao seu lado.
- Você sabe como se faz para um leão tomar o lugar de líder de outro? - Estou sentindo que isso não vai acabar bem.
- Não. -
- O leão precisa derrotar o líder em uma luta brutal. Nessa briga pode acontecer três coisas. O atual líder pode derrotar o desafiador, pode morrer na batalha ou pedir exílio... Se o ex líder morrer, toda a sua linhagem morre com ele... Se ele escolher exílio, ele nunca mais poderá retornar ao seu antigo território e sua antiga família e todo o tipo de contato com ela será proibida. -
- ... - Eu não sei o que dizer.
- Aquele psicopata quase me matou... Eu lembro que ele tava em cima de mim enquanto tentava cravar os dentes no meu pescoço. - O Sombra descrevia tudo tremendo e falando entre os dentes.
Podia sentir sua raiva acumulada tentar sair ao mesmo tempo que o mais velho a puxava de volta para dentro.
- Quando eu comecei a ver tudo em preto, eu pedi por exílio, porque eu só conseguia enxergar o rosto do meu filhote... - Sua voz fraquejou e vi uma única lágrima escorrendo sobre o seu rosto.
Aquela cena me partiu o coração. O Sombra sofreu muito mais do que eu imaginava. E foi só agora que eu notei que ele tem bem mais do que apenas uma grande cicatriz.
- E depois... - Ele quis continuar, mas eu não aguentava mais ouvir nada disso.
- Não, chega! Para! - Pedi meio angustiado. - Não precisa me dizer mais nada. -
Ficamos em silêncio depois disso. Não queria perguntar mais nada para o Sombra, não sabia o que dizer e não tinha cara para sair de lá agora. Então, eu só me deitei do lado dele olhando para o teto também.
- Você fez o que achou que era melhor para o seu filho... não precisa esconder suas lágrimas... elas só estão dizendo o quanto se importa... -
Voltei a minha cabeça para ele que levou os seus olhos vermelhos aos meus. Ficamos lá por um tempo só nos encarando, foi só depois de uns segundos que eu percebi que nunca estivemos tão próximos assim um do outro, em todos os sentidos. Tenho que admitir que ele tem sido muito paciente comigo. Bom, do jeito dele.
Me virei de lado esquecendo que estava ferido por um instante. Juntei as minhas mãos e as coloquei de baixo do meu rosto para me sentir mais confortável, e acabei ficando mais perto do Sombra do que nunca. Ele também virou o seu corpo para mim fazendo o seu braço direito de travesseiro.
Com essa pouca distância entre nós, pude olhar bem de perto para os seus olhos azuis. Eles eram hipnotizantes, a cor era cálida e se destacavam mais com alguns fios de negros apoiados na sua face. Mas acordei do meu transe quando o vi piscar algumas vezes.- A-ah, já está meio tarde, né? Acho que vou dormir um pouco. - Disse meio sem jeito me levantando. - Volto amanhã para continuarmos a praticar... Boa noite, Sombra. - Me despedi nervoso enquanto atravessava a passagem de raízes.
Quando eu saí, fiquei parado na frente da arvore processando tudo. Encostei as costas no tronco que estava atrás de mim para recuperar o folego. Meu coração não queria se acalmar. Podia ouvi-lo batendo, lutando para sair do meu peito.
O que acabou de acontecer?
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A Minha Besta
Teen FictionEm 2235, houve uma era de caos entre o homens. Os cientistas acreditam na possibilidade de combinar o DNA humano com o de animal. E assim foi feito. Milhares de pessoas foram feitas prisioneiras e cobaias de desse plano irracional. Porém, depois de...