I. Querido Fantasma, por favor vá embora

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O tic-tac do relógio parecia imitar o latejar da cabeça de Thalassa D'Angelo, fiel e cruelmente.

Havia algo de diferente no ar naquele dia.

Como se algum deus cruel e antigo quisesse punir a todos com aquela maldita chuva fora de época que fazia sons estranhos ecoarem pela clarabóia da galeria.

Relâmpagos iluminavam ocasionalmente o cinza escuro decrépito do céu, como a ameaça de algum outro deus.

Não era um bom sinal.

Ainda que ela não acreditasse em algum outro deus que não o seu bom Deus, invisível aos olhos, mas a chuva estava terrivelmente perigosa.

Os quadros — com o melhor da arte moderna — sendo carregados pelos subordinados de Thalassa, pareciam zombar dela, demonstrando cor e profundidade em seus infinitos movimentos, enquanto ela se via cinza como a chuva. Uma das pinturas chegou até, em seu eterno desprezo, a olhar para ela e revirar os olhos.

Malditos fossem.

E justamente aquele não era o melhor momento para ver espíritos, mas não se podia simplesmente dizer "Ei, Sr. Fantasma, eu estou ocupada aqui, volte mais tarde", acredite, Thalassa tentou.

Ainda não eram nem 2 da tarde, e para melhorar o remédio para a dor não tinha feito efeito, mas a jovem não podia parar ― ela não havia parado nos últimos quatro meses.

O prazo que tinha para cumprir a impedia de parar e responder o velho norueguês que seguia-a naquele instante, implorando para que Thalassa o dissesse onde estava sua esposa.

Fantasmas tolos e egoístas.

― Por favor, Madame Beijada pelas Ondas, diga-me onde minha Mary está. ― Ele pedia, o sotaque acentuando o desespero que sentia... ou sentiu, um dia.

Ela tentou ignorar, mas quando ele implorou pela terceira vez, chegou ao limite e quebrou a sua maior regra desde que descobriu sobre a... era difícil até mesmo de pensar... sobre a mediunidade.

Regra n° 1 do Clube do Médiuns Não Assumidos: nunca, em hipótese alguma, interaja com fantasmas em público.

Vai embora, porra! ― gritou ela, sufocada demais para conseguir pensar nas consequências. Tarde demais.

E a Galeria Morelli, que nunca esteve tão eufórica quanto naquela sexta-feira chuvosa em Florença, parou para a ver gritar. Com o nada.

Alinhando uma escultura bem em sua frente estava Diego Pedraza, seu assistente. E, é claro, ele se assustou com o grito nada usual de sua chefe.

― Quem? Eu?

Merda.

― Droga, Pedraza, não. Desculpe. Volte ao trabalho ― sussurrou, com seu italiano quase natural.

Thalassa tentou não deixar os lábios se transformarem em uma linha fina enquanto marchava lentamente para a escada curva que levava ao seu pequeno escritório. Ao fechar a porta e se encostar contra ela, lutou para que o ar entrasse e saísse, oxigenando os pulmões. Ordenou ao corpo que parasse de tremer. E contou as respirações, uma a uma.

Seu escritório no andar de cima era simples, mas decorado com a precisão do olhar de sua designer de interiores particular, a Thalia. Uma mesa preta brilhante, com uma cadeira de encosto baixo branca atrás e duas cinzas na frente. À direita da mesa, um aparador largo de madeira abaixo da janela que dava para a rua e toda a vista do norte da Florença. À esquerda, uma estante do chão ao teto abarrotada de livros. Grande parte para pesquisa histórica dos muitos itens raros que eram vendidos desde que a Morelli se tornou bem quista.

Icarus - Entre o Sol e o OceanoOnde histórias criam vida. Descubra agora