Ela estava sentada confortavelmente em uma poltrona de camurça verde musgo.
Mas seu corpo grande e esguio havia diminuído, as tatuagens sumido, a cor do cabelo mudado para amarelo.
Estava mais jovem, percebeu.
― Eu lembro que era tarde ― a jovem ela dizia, olhando para o teto. ― Eu devia estar na cama à duas horas mas estava longe de me sentir cansada. Debaixo do cobertor, com uma lanterna ligada eu lia sobre... mitologia grega. De repente a luz do meu quarto se acendeu e o meu pai disse da porta: "Você deveria estar dormindo, carino". Carino. Era como ele me chamava.
― E depois? — indagou gentilmente a Dra. Martinez. Sua psicóloga.
― Depois eu disse que queria ler mais. E ele sorriu pra mim até os cantos dos olhos enrugarem. Isso era um sinal de cansaço, assim como as olheiras fundas embaixo dos olhos... Enfim, ele sentou ao meu lado na cama, se cobriu junto comigo e me contou histórias da mitologia. Ele tinha um jeito próprio de contá-las. Ficamos acordados por mais duas histórias e então ele me cobriu, beijou minha testa e disse para eu ir dormir porque estava tarde.
― Você lembra que histórias ele te contou? ― A doutora perguntou.
Vamos lá Thalassa, respire fundo e não surte, ela lembra de ter pensado.
― Não, eu não lembro. ― A doutora anotou algo em seu caderno. A garota se perguntou o que havia ali, se em quatro consultas ela já tinha a diagnosticado como louca. A garota sabia que com certeza tinha o termo suicida escrito ali. Estamos sempre presos a rótulos.
― Tem certeza? Pense mais um pouco, Thalassa.
Mas a garota já estava de saco cheio depois de duas semanas.
― Olha doutora, eu achei que estava aqui para tratar da minha recente tentativa de acabar com a minha própria vida, não para falar sobre contos que eu escutava quando tinha 8 anos de idade.
― Sim, Thalassa. Mas também é sobre como a morte do seu pai influenciou tudo isso ― Ela respondeu com calma. ― Talvez tenha sido sobre Paolo e como ele a fez acreditar que teriam uma vida feliz juntos, quando na verdade ele era infiel e só queria sua herança.
A garota pediu para ela parar, mas ela continuou.
― Talvez seja sobre sua decisão estúpida e absurda de se embebedar aquele dia, causando não só um acidente mas a morte daquela criança.
― Para, para. Para! ― gritou, sem receber resposta.
― Como foi? Andar sobre aquele parapeito alcoolizada, seguindo uma criatura imaginária? ― ela não parava. E o sorriso de ódio que se formava em seu rosto atrás daquela mesa era feral. ― Você viu seu pai aquele dia?
A doutora começou a pegar fogo. Tudo desde os olhos até o cabelo. Era como se ela fosse feita daquilo. Uma chama viva do próprio inferno.
A garota não conseguia parar de gritar, as lágrimas não paravam de cair
― Me responde, Thalassa. Me diga como você se sentiu após falhar em sua ida para outro mundo. Olhe para ele, e responda como você foi capaz de deixá-lo. ― A voz se tornou sombria, com eco e maldade. Uma voz de outro mundo.
Nos braços da garota, jazia um pequeno bebê, enrolado em um cobertor, de olhos abertos mas sem vida.
Tão pequeno e indefeso, mal teve chance de viver e foi tirado de sua mãe.
Então, a pálpebra do pequeno bebê se abriu, chama viva emergindo do que teria sido seus pequenos olhos.
Um barulho estridente explodiu em seus ouvidos e Thalassa acordou, suada e com a respiração ofegante em seu quarto.
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Icarus - Entre o Sol e o Oceano
Fantasy🏆 VENCEDOR DO WATTYS 2021 na categoria PARANORMAL 🏆 Conteúdo Adulto (+18) Em Nova Orleans tem de tudo. É lar de gente sem medo de viver, com rock alto e jazz melancólico de trilha sonora. É onde os sonhos moram, as ideias nascem, os amores aflora...