XXVII. Ícaro Constantine Kalamari

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O limbo é o lugar onde habitam seus piores medos. É frio e quente demais. É onde está sua vontade de persistir e desistir de uma vez.

Era uma tarde progressista de outono, talvez início de inverno, quando sua família foi visitá-lo.

Seu quarto naquela clínica era luxuoso, mas não tinha nada de pessoal dele. Talvez, apenas, uma pilha de cartas não terminadas e arremessadas contra a cômoda de madeira polida, no formato de bolinhas amassadas.

Não tinha direito a ter mais nada, nem o violão que sua mãe lhe dera.

Era justo, ainda que a história estivesse embaçada demais em sua cabeça para entender a gravidade do quanto ele merecia aquela punição.

Havia semanas e ainda sentia o gosto de cinza na boca.

E sua família, que os deuses o aniquilasse, visitaram apenas quando tiveram certeza de que Ícaro não pediria a alguém uma última carreirazinha.

Não... eles deixaram para ir quando a culpa começou a invadi-lo. Tinha uma pequena noção das coisas, momentos vagos voando em sua mente. Uma orgia; Klaus oferecendo bebida a algumas garotas; Ícaro tomando comprimidos coloridos apenas porque amarelo e violeta combinavam. O resto da confusão que havia se desenrolado nem era necessária para que o cantor soubesse exatamente o que havia acontecido para ele ter acordado em uma clínica de reabilitação.

— Ah, meu filho! — Tatiana havia dito assim que o viu. Chocada com o estado deplorável em que ele se encontrava.

Ela não era sua mãe, mas ainda sim não conseguiu se conter de chamá-lo assim daquela vez. E ele sinceramente estava bem com isso, uma vez que talvez precisasse mesmo do colo de uma mãe naquele momento.

— Eu sei. Estou um trapo.

Seus olhos estavam fundos, quase vítreos. O nariz, cheio de feridas. Ele estava abaixo do peso, com ossos começando a ressaltar por todo o corpo e, além disso, levava consigo vários hematomas no abdômen que ele sinceramente não sabia de onde viera.

O limbo era o lar do maior espelho do mundo, onde você é obrigado a encarar o que já foi um dia, o que é e o que provavelmente nunca vai ser.

Seu pai era mais sério, acenando com a cabeça e dizendo apenas:

— Fazendo progresso?

Liv soluçou assim que entrou no quarto. E em segundos estava abraçada a ele, chorando em seu peito.

— Eu te bateria, mas não consigo parar de chorar! — Exclamou. Liv sempre o ameaçava, mas nunca havia de fato encostado um dedo nele.

Aquele dia ele queria que ela o tivesse feito.

— Qual é, maninha... Não é tão ruim assim — Ícaro afagou seus cabelos. — Eu como três vezes ao dia, bebo muita água e faço exercícios. A primeira semana foi horrível, é claro, você teria odiado me ver naquela semana. Toda semana tem a punheta grupal com todos admitindo as suas próprias merdas e eu tenho me saído bem.

O limbo é o pior lugar para se estar, quando, em vida, você está em débito com a morte.

— Mas ainda sim! — Liv sibilou. — O que você estava pensando, hein? Perdeu a porra do juízo?

— Olivie! — Tatiana repreendeu.

Ícaro olhou para a madrasta.

— Está tudo bem. Deixe que diga o que pensa. Eu mereço — Engoliu em seco. — Vocês falaram com ela?

Era um dilema incomum que ele vinha remoendo nas últimas semanas.

Ele olhava para o espelho da vida, como desculpa para não encará-la. Era um covarde.

Queria ver Solaris, naqueles dias confinados na clínica. Queria abraçá-la e ouvi-la dizer que tudo ficaria bem, mas ela não iria querer vê-lo e sua única esperança era alguém dissessem a ela que ele sentia muito.

— Nós ligamos — Foi Charles a dizer. — Ela... ela não quer vê-lo.

Ícaro devia ter desconfiado quando, dias depois, ela subitamente apareceu na clínica para o visitar.

Solaris havia se aproveitado daquela vulnerabilidade e o enganado. Colocou uma cláusula no pré-nupcial que selou a cova dele e Ícaro foi coagido a uma vida miserável.

Ela havia levado a vingança para outro nível.

E foi naquele lugar, limpo e sujo e fora da gravidade de um mundo normal, que Ícaro Kalamari viu a esposa pela primeira vez em 18 meses.

Icarus - Entre o Sol e o OceanoOnde histórias criam vida. Descubra agora