A Última Tentativa

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Eu estava em frente ao espelho. A porta trancada, a tintura nas mãos. Os olhos já haviam sido modificados. O que antes era castanho, virou um tom entre verde e mel, estranho em mim.

A máquina de cortar cabelos estava ligada, em cima da pia, esperando a única coisa que me faltava naquele momento: coragem.

Sim, eu estava com medo. Com medo de mudar, porque mudar implicaria também em deixar quem eu era para trás.

Deixar tudo o que eu tinha vivido, para trás. Eu deveria estar feliz por isso, e em parte estava, mas também tinha aquela pequena parcela que não queria enfrentar os desafios de ser um novo alguem.
Que não queria deixar, também, que o vento levasse a Pri e os meus pais.

Mas, tem uma hora em que é preciso deixar todos medos de lado e experimentar. Ousar. Sair um pouco das linhas e pintar com cores novas.
E talvez tenha sido isso o que me impulsionava para seguir adiante com aquele plano.

A partir do momento em que eu mudasse a cor do meu cabelo para um ruivo bem forte, e deixasse que as mechas caíssem a medida que passava a máquina, eu não seria mais Daniel Lancaster, não.

Eu me tornaria Gabriel Stancorn, descendente de irlandeses que morava no Brasil, cujos pais tinham morrido de uma doença muito velha na família. Estava a procura de um novo emprego, de uma vida melhor.

Tudo isso para enganar a polícia, caso fôssemos pegos. E também para que não fôssemos reconhecidos quando voltássemos à TN. Tudo sempre voltava à The Nightclubers. Sempre.
E, segundo Paiva ( e eu também concordava), estava na hora de arrancar o mal pela raiz. Estava na hora de destruir aquele lugar, junto com todos os seus idealizadores.
Seria difícil, depois de sentir o gostinho da liberdade, voltar àquela gaiola, mas eu estava disposto a correr o risco.

Só havia uma coisa maior que meu medo de mudar naquele momento: minha sede de vingança.

Pensando nisso, peguei a tintura que estava me esperando e passei no cabelo. Dali em diante, um novo Daniel estava se formando.

******

Uma hora depois, eu me olhava no espelho novamente. Quer dizer, Gabriel Stancorn me olhava no espelho, com seu cabelo no estilo militar ruivo e seus olhos marcantes.
Saí do banheiro e encontrei o restaurante vazio, do mesmo modo que estava horas atrás.
Me sentei na mesa perto da porta.

-Nossa, você está... diferente.

Era a voz do Paiva. Mas, ao me virar para cumprimentá-lo, não foram seus cabelos loiros e olhos castanhos que eu encontrei.
Diante de mim, uma versão de cabelos roxos escovados e olhos azuis do Paiva me encarava.

-Uou, isso é uma mudança... radical.

-É eu sei. Você também está muito diferente. Agora vamos repassar o plano. Daqui a dois dias, o Chefe vai visitar a TN para fazer a inspeção mensal. Nesse dia, nós precisamos estar lá dentro. A bomba vai ser nossa distração de novo, dessa vez eu mesmo cuidarei dela, enquanto você tira as meninas do local, entendeu? Daí, é só matar o Chefe e a Irma, que estarão na sala da Porta Preta.

-Você fala como se fosse a coisa mais simples do mundo. Como nós vamos entrar lá? Estamos sendo procurados nos Emirados Árabes inteiro, esqueceu?

-Vamos nos entregar. Hoje à noite.

Um arrepio passou pelo meu corpo assim que as palavras foram pronunciadas.

- Você tá maluco?!

-É o único jeito de entrarmos. Esses disfarces nos darão cobertura, mas não por muito tempo. Ainda temos o mesmo rosto, Daniel. Mas só podemos nos emtregar depois de instalar as bombas para que sirvam como distração e a bomba que vai explodir aquilo tudo. Não é um plano de fuga, Daniel. Não mais. É para destruir aquela boate de uma vez por todas.

-E quanto às filiais espalhadas pelo mundo? E onde serão instaladas as bombas?

-Vamos ao banheiro e instalamos. Depois, é só esperar e mandar todo mundo embora. Com certeza haverá uma mobilização de capangas e guardas, e eles estarão nos levando para o porão. E sobre as filiais, era uma distração. O centro mesmo é aqui, em Dubai.

-Esse plano está feito sobre suposições, Paiva. Isso não é uma suposição. Milhares de vidas estão em jogo, nós não podemos falhar.

Respirei fundo, tentando evitar ao máximo reter o cansaço que emanava do gesto.
Paiva pegou em minha mão e olhou no fundo dos meus olhos de um jeito que nunca havia feito antes.

-Nós não vamos falhar, confie em mim.

Apertei sua mão, e sorri internamente, enquanto deixávamos o pequeno restaurante e seguíamos em direção para, com sorte, o final daquilo tudo.

********

Após comermos tudo o que conseguimos, Paiva e eu voltamos ao vale em que passamos a noite, esperando a hora em que a TN abriria. E desfrutando, talvez, do que pudesse ser nossa última tarde.

Eu deitei no chão e senti o vento no meu rosto. Observei as nuvens mais uma vez, com certa dificuldade imposta pela luz solar.
Em cima do plano do Paiva, havia a minha própria sede de vingança.

Fui despertado de meus devaneios por uma melodia muito conhecida por mim. Abri os olhos e encontrei Paiva com o rádio, o mesmo que eu havia encontrado em seu quarto na TN, o que parecia ter acontecido séculos atrás.

-Como... como ele está funcionando?

-É recarregável. Estava guardando isso para uma ocasião especial, então...

Ele pegou um de seus cd's escondidos e pôs para tocar. Na hora, reconheci a melodia de Already Home, do A Great Big World.

-Essa música...
Disse, me lembrando que era a mesma múdica que tocava no carro dos meus pais, no dia do acidente.

-Me concede essa dança?
Ele disse, estendendo-me a mão de maneira teatral.

-Claro.

-"You say, love is all you put into it..."*

Paiva acompanhava a música, cantando em meu ouvido cada estrofe, o que tornava o que eu faria cada vez mais difícil.
Como trair alguém que dizia que "dobraria todas a luzes da cidade para ter certeza que elas brilhariam em mim"? Mas, o pior de tudo, era que eu também faria o mesmo por ele. Porém, eu sempre me lembrava de tudo o que havia me acontecido e acontecido a várias outras pessoas durante anos...
Paiva tentou fazer um passo de dança comigo, mas, ao invés de girar e cair nos seus braços, girei e o derrubei no chão. Caímos na gargalhada assim que nossos corpos tocaram o chão duro revestido com uma fina camada de grama e musgo.

-Você deveria ter visto a sua cara!

- E a sua? Parecia um amendoim vestido de Katy Perry, com esse cabelo.
Ele riu do meu comentário e depois me encarou, sério.

-Eu não sei o que vou fazer, quando tudo isso acabar.
Ele alisava meu rosto.

-Vai recomçar. Vamos recomeçar. Uma vida nova, construída a partir da morte de nossos medos.

Ficamos em silêncio por algum tempo, nos encarando, até que, institivamente, nossos lábios se colaram num beijo doce e desesperado, voraz e calmo.

-Puta merda, eu tô apaixonado.

Ele disse, e passamos o resto da tarde assim, esperando o início do fim começar.

Revenge: As CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora