Das Cinzas, renasce

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Acordei com uma imensa dor de cabeça. A luz que incidia sobre meu rosto me cegava parcialmente, de modo que minha percepção sobre onde eu estava era falha.
E, quando tentava acessar em minha cabeça a parte em que eu me lembrava de onde eu estava, e o que tinha acontecido, tudo o que eu encontrava era um vazio, como se tivesse sido arrancada de lá.
Demorei um pouco para me acostumar á luz, que descobri, mais tarde, vir do sol.
Eu estava numa espécie de deserto, as roupas encharcadas.
Olhei à minha volta e não consegui identificar mais ninguém ali comigo.
Até que via silhueta dele, e o que deveria ter se acalmado, inexplicavelmente, se agitou ainda mais, me deixando irrequieto.
Suas roupas eram a cópia das minhas, farrapos sujos de sangue e barro
-Oi.
-Afaste-se de mim.
João olhou para cima, num gesto de cansaço, e depois olhou para mim.
-Daniel, vou ser sincero com você. Nós estamos fugindo de uma das maiores gangues de tráfico do mundo. Se não corrermos, eles irão nos alcançar. Então para com essa infantilidade do caralho e levanta a bunda daí.
A impaciência era perceptível em sua voz.
Eu não lembrava de nada ainda. A dor de cabeça estava se tornando insuportável.
-Mas, por enquanto... descanse um pouco. Ontem foi um dia muito cheio, você bateu a cabeça...
-Eu bati?
Ele assentiu.
-Você não se lembra?
Balancei minha cabeça negativamente.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes. Parecia estar considerando se valeria a pena contar ou não.
-Foi tudo muito estranho, para ser verdadeiro. Tudo ainda parece um borrão, cheio de sangue e desespero...
Ele ficou mais algum tempo em silêncio. Tinha tensão, tristeza e um cheiro de morte no ar. As coisas começavam a se desvendar em minha mente.
-Espera... eu me lembro de... da Priscila.. ela.. ela ia me matar... o que aconteceu? Cadê ela?
O desespero, antes algo distante, começou a se aproximar de mim, e a tomar conta das minhas emoções.
-Calma, vou te contar.
Ele respirou fundo. Ainda parecia estar considerando se era confiável ou não me contar o que havia acontecido.
-Acho bom você me contar, porque mais cedo ou mais tarde essa amnésia vai passar. Então, quanto mais tarde, pior para você.
-Tudo bem. Priscila estava com a arma apontada para você. Haviam vários guardas ao redor de vocês, e Irma estava lá também, o que dificultava muito as coisas em relação ao seu resgate.
"Então, tive que agir silenciosamente. Tive que desarmar guarda por guarda enquanto você conversava com a Priscila sobre... suas coisas. Mas então, Irma induziu Priscila a atirar em você e ela estava quase apertando o gatilho... entenda, Dan. Me entenda por favor... Ela iria atirar em você... eu não poderia te perder também. Não poderia, e não posso...
-João, o que aconteceu?

-A... A Priscila... Ela morreu. Ela estava prestes te matar. Apertou o gatilho e eu te empurrei. Por sorte, estava por perto, então quem morreu foi o guarda atrás de você. Eu tive que atirar nela, Dan. Ela estava atrás de nós, então atirei nela e na coxa da Irma. Com as duas interceptadas, e a maioria dos guardas desarmados, o resto foi fácil. Matei o resto dos guardas e dei uma coronhada na cabeça da Irma, deixando-a desacordada.Como você havia batido a cabeça quando te empurrei, você estava desacordado. Tive que te arrastar por todo o caminho até aqui. Só conhecia esse lugar seguro, no deserto, fora dos olhares do Chefe. Então, estamos aqui.

Ele disse, demonstrando o quão frio ele era. Do modo como falava, parecia que havia se livrado de um peso. Do lixo que ficou de jogar fora no dia anterior. Não de uma pessoa, a quem havia assassinado quando precisou.
Permaneci em silêncio enquanto levantava e me afastava dele.
-Dan, por favor... precisamos sair daqui.
-Me deixe em paz!
-Dan...
-ME DEIXE EM PAZ!
O grito ecoou pelo deserto.
Ele abaixou a cabeça, e se afastou de mim.
Então, eu desabei.
Desabei por ter culpa da morte dela. Se eu não tivesse me metido naquela roubada, ela ainda estaria ali, comigo. Ainda estaria me protegendo, como sempre fez.
Deitei no chão, ainda com lágrimas no rosto, e me aninhei junto da sacola de roupas.
Adormeci ali, portanto não sei se foi sonho ou alucinação, mas lembro-me nitidamente do acontecimento.
Eu estava do lado de um garotinho em um carro, fazendo uma viagem com os pais.
Eles pareciam aborrecidos, assim como o garotinho, que estava chorando enquanto tocava, no rádio automotivo, Wake Me Up When September Ends, do Green Day.
"Como foi seu dia na escola, querido?" Ela diria a seguir.
E o garotinho responderia "Normal" no tom entediado de sempre.
Eu sabia disso porque aquele garotinho era a mesma pessoa que perdeu a Priscila algumas horas atrás. E, naquele dia, perdeu os pais para a morte num acidente de carro terrível, difundido pelo país inteiro.
-Porque você está assim? Foram aqueles garotos de novo?
-Não sei.
- Esses mini delinquentes! Meu filho não é viado, e nunca será!
O pai do garotinho esbravejou.
-Pai...
-Essa gentinha promíscua! Não se respeitam, isso sim.
-Pai...
-Vão todos queimar no fogo do inferno! Todos!
-PAI, EU SOU GAY!
O garotinho não pôde ver o qual foi a reação do pai ou da mãe. No instante em que ele terminou de pronunciar a palavra "gay", uma liz forte incidiu sobre o automóvel, indicando o caminhão em alta velocidade a frente deles.
A mãe do menino tentoi desviar, mas era tarde demais. A luz foi ficando cada vez mais forte, até que foi impossível enxergar qualquer coisa, mesmo que estivesse a um palmo de seus olhos. A mãe virou-se a tempo de abraçar o filho, num último ato de coragem e sussurar-lhe aos ouvidos:
-Eu te amo. Não importa como seja.
Então, a colisão aconteceu. A última coisa de que se lembra é de sentir as lágrimas da mãe em seu ombro, misturando se com as suas.
A cena se desfez, e outra foi construída diante de mim, como num filme. Definitivamente, aquilo era uma alucinação.
-Você tem que ser forte, Dan. Você acha que seus pais iriam querer que você ficasse assim, se lamentando pelos cantos? Já fazem dois anos!
Eu me lembrava daquela conversa. Foi a primeira vez que eu tinha saído, desde a morte de meus pais.
-Tá bom, vai. Mas vamos para onde? Não tem nada de bom em cartaz, o pessoal da escola é um porre, e eu não quero ir nessas festas que você vai. Eca.
Ela abaixou a cabeça. Eu sabia exatamente o que ela iria fazer. Se ela achava que iria me derrubar com esse olhar dela...
-Por favoooor!
Ela disse, levantando a cabeça e fazendo beicinho.
-Eu não vou cair nessa.
Era uma grande mentira. Me lembro que minutos após dizer aquela frase, estávamos no cinema, assistindo a um filme de drama qualquer. Depois disso, não passei um dia em casa. As coisas melhoram e fui morar com a Priscila, ao invés da minha tia. Foi a última vez em que a vi.
A cena se desfez novamente, dessa vez para formar uma lembrança recente, bem recente.
Estávamos no quarto dela, um pouco antes da viagem para Dubai.
Estávamos deitados, eu na minha cama improvisada e ela na dela.
-Pri? Priii?
Ela acendeu o abajur.
-O quê?
-Posso dormir aí com você? Tô com tanto medo...
Ela sorriu para mim, exatamemte como minha mãe fazia, e deu alguns tapinhas na cama, ao lado dela.
Deitei ao seu lado, com a cabeça em seu colo. Ela me fez um cafuné, do jeito que eu gosto.
-Isso me lembra uma música, sabia?
-Canta para mim, então.
-Ok.
"Estátuas e cofres e paredes pintadas ninguém sabe o que aconteceu...
Ela se jogou da janela do quinto andar, nada fácil de entender...
Quero colo, vou fugir de casa
Posso dormir aqui, com vocês?
Estou com medo, tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três..."
Priscila tinha uma voz incrível. E ali, em seus braços, me lembro de adormecer, imaginando um futuro para nós dois.
A cena se desfez novamente, dessa vez refazendo-se no quando Priscila apontava uma arma para mim, horas antes.
Os olhos dela estavam tão cheios de lágrimas...
Todo o sofrimento que emanava deles, todo o sacrifício.
-Eu te amo, desculpa.
Ela disse e apertou o gatilho da arma. Nesse momento, tudo ficou preto, e eu estava caído no chão.
Priscila tentava matar Paiva, e então, por legítima defesa, ele apertou o gatilho.
Foi como se ele tivesse atirado em mim, em meu peito.
A surpresa passou pelos seus olhos antes de ficarem inexpressivos, como nunca antes vistos.
Antes que eu pudesse correr até lá e agarrá-la, tudo desapareceu.

-Priscila!
Resposta: tudo não tinha passado de um sonho. Eu estava encharcado de suor, e oa fantasmas do sonho, os fantasmas ainda me assustavam, ainda me apavoravam.
Internamente, eu me recusava deixar Pri virar um fantasma.
Internamente, eu não sentia raiva do Paiva, da Irma, ou do Chefe. Eu sentia raiva de mim. Eu sentia raiva das circunstâncias que me jogaram naquele inferno.
Mas, o que importa, segundo o filósofo, não é sentir ou não sentir raiva. É o que você faz dela que faz a diferença.
Tinha chegado a hora de agir. Tinha chegado a hora de ver se escolher meu próprio lado, valeria a pena.

Revenge: As CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora