Desabafo Amargurado

12 1 0
                                    

Guardou as embalagens, jogou fora o que restou, desligou as luzes do cômodo e ligou o ar condicionado no frio para que não derretesse os chocolates, na cozinha se agarrou a alienígena para se esquentar, pois a frieza da sala cobriu todos os cômodos.

— Coloque seu casaco no cesto para eu lavar depois! — Comentou enquanto preparava um Toad in the Hole no forno.

Retirou o casaco e levou até o banheiro, onde colocou no cesto de roupa sujas que continha poucas peças e então voltou para a cozinha, quando Clara retirou a forma do forno, viu que ela havia se machucado no dedo e estava com um band-aid, que os humanos utilizavam para machucados pequenos.

— Clara, o que aconteceu? — Segurou a mão dela, com um braço e o outro passou em sua cintura, como casais prestes a dançar valsa.

— Não foi nada Doc, eu só me cortei com a tesoura enquanto preparava os mimos. — Comentou com a cabeça erguida, se aquecendo apaixonadamente com a preocupação da loira.

— Tome cuidado, Clara, não gosto que se machuque! — Pegou o dedo feminino e tirou o band-aid.

Levou o dígito para os lábios como se fosse beija-lo e assoprou, um vapor quente saiu dos lábios claros e o ar se encheu de chamas amarelas e enérgicas, quando olhou para o dedo não possuía mais cicatriz nenhuma e o corte fora cicatrizado, apertou a palma entre as suas e a beijou. A professora foi pega de surpresa, sempre era si que começava os beijos, mas dessa vez a Doutora iniciou lhe debruçando sobre o fogão, sentia preocupação na carícia e zelo, fora abraçada e erguida do chão.

—Doc! — Deu risada e foi colocada de volta.

Devolveu um selinho nela e percebeu que o gosto do chocolate passou para sua boca, cortou na forma a comida que preparou, que era com massa, salsichas assadas acompanhadas com molho madeira, e passou para o prato de ambas, pegou uma garrafa de suco natural e entregou-a junto dos copos para a Doutora e pegou os talheres, foram para o quarto comerem.

— Doc, você me leva pra escola amanhã?! — Perguntou enquanto bebia o copo de suco.

— Com certeza eu levo! — Comeu uma garfada de salsichas, confiou em Clara para comer as comidas oferecidas.

— Obrigada! — Lhe deu um beijinho no rosto. — Por que tem todas as coisas que eu preciso levar amanhã para a escola!

— Sem problemas, a TARDIS é boa para carregamento e fretes! — Comentou animada. — Eu poderia abrir uma empresa de mudanças.

Ergueu as mãos no ar como se expondo algo.

— TARDIS doce TARDIS! — Tinha brilho nos olhos de quando falava algo incrível. — Ou melhor, Transporte Ágil Remunerado Dimensionalmente Interestelar em Segundos.

Clara bateu palmas pela apresentação da amante, se esforçando para segurar o riso e encheu a boca de comida para não se entregar.

— E eu vou precisar pagar para usar esse transporte?! — Perguntou crítica.

— Você pode começar me familiarizando com o dinheiro humano! — Bebeu o suco depositando o prato no criado mudo.

— Não, não! — Espetou o garfo no seio dela. — Minhas formas de pagamentos seriam diferenciadas.

Riu maliciosa mordendo sedutoramente a salsicha e a loira desviou o olhar com o rosto queimando. Guardou os talheres, copos e pratos amontoados no criado e se deitaram.

— Como era a sua escola?! — Perguntou fazendo círculos na barriga alheia.

— Era legal, eu achava ela muito bela, tinha torres de vidro com passarelas cobertas ligadas a dormitórios, salas de aulas e portos. — Falou sem muito ânimo.

— Parece que você não era muito boa aluna ou não gostava de estudar! — Cutucou a amiga com o ombro.

— Não tive livre arbítrio quanto a isso, fui obrigada a estudar. — Sacudiu-se.

— Normal Doc, parece que os pais alienígenas são iguais os humanos, nos forçam a estudar! — Riu.

— Não Clara, eles literalmente arrancavam as crianças de suas famílias na faixa de oito anos de idade para ficarem estudando por séculos em uma cidade totalmente anexada da capital. — Completou com desgosto. — E não tínhamos como fugir, ela cobria 48 quilômetros da superfície de Gallifrey.

— Mas você tinha amigos, não é? Era popular? — Insistiu com um sorriso.

— Eu sempre sofri bullying no orfanato e na escola, por ter medo do escuro! — Comentou encostada na cabeceira, a luz da lua contristava o prateado com o dourado de seus cabelos. — Eles riam de mim, me assustavam, me jogavam para fora da cama e roubavam meus cobertores para eu não poder me esconder.

Clara se sentiu amargurada pelos relatos da amiga, debruçou a cabeça sobre ela, era professora e assuntos a respeito de escolas, alunos e convívios lhe interessavam demasiado, não conseguia simplesmente não ser tagarela nesse quesito e curiosa insistente.

— Mas você gostava de estudar? — Mirou os olhos verdes, que se encontravam acinzentados devido o luar.

— Eu era bem indisciplinada na verdade, não que toda a questão de me tratarem mal me ajudasse a ser um aluno exemplar e estudioso, a ter que ficar louco naquela escola, eu preferi ser um eterno fugitivo das leis de Gallifrey. — Exprimiu as palavras cuspindo. — Daquele povo e daquele planeta!

Cuspiu as palavras.

— Clara, Gallifrey me transformou no que eu mais odiava: em um monstro! — A humana ergueu a cabeça do torso feminino e encarou a alienígena com um misto de curiosidade e preocupação. — Eu odeio Gallifrey e odeio odiar Gallifrey, é o meu lar!

Rosnou com raiva e o tilintar de seus dentes dava para ouvir, devido a força do atrito.

— Mas eles tiraram tudo de mim. Mataram a minha família, enlouqueceram meu melhor amigo e usurparam de mim a pessoa que eu amava! — Gritou segurando o rosto com as mãos.

Clara ficou assustada com a reação da Doutora, jamais cogitou que algo de tamanha profundidade pudesse assolar e afligir aquela mulher que tinha tamanha aura benigna e transbordava energias positivas, devido o choque com o que presenciou, apenas percebeu que a loira chorava quando viu os ombros se alavancarem e ouviu os barulhos do soluço, colocou o braço pelo ombro dela e deitou a cabeça em seu colo, acariciando os cabelos curtos e apenas ficando ali, sabia o tipo de choro que era aquele, era um choro desesperador e angustiante de quem suporta muita coisa tentando se manter forte.

Sentiu os dedos lhe acariciando sobre o couro cabeludo e a massagem se tornará relaxante e aos poucos seus soluços diminuíram e o choro se calou, apenas permaneceu absorvendo a carícia, ainda escorriam lágrimas de seus olhos, tinha tanta coisa que não podia contar para Clara, era uma alienígena com mais de dois mil anos, já vivera o suficiente para ser taxada como herói e vilã, seus milênios de vida não conseguiria ser contado em meio ou um ano terráqueo e nem com a proporção de assuntos supérfluos como os da humanidade, pela primeira vez na vida ficou e se sentiu humilhada, garantia que parecia um animal indefeso, afinal esse corpo era novo, seus sistemas eram novos e principalmente seus emocionais, o que poderia dizer, até mesmo uma Senhora do Tempo poderia ser mais frágil emocionalmente.

Clara depositou um beijo no rosto claro, encantada que pela primeira vez fora a alienígena que dormira sob suas carícias, sabia que ela estava exausta e tinha imensidão de assuntos que não podia compartilhar consigo, mas não se frustrava, compreendia que cada ser contém suas gravidades relativas, aninhou ao corpo adormecendo e agarrando-a fortemente, para que não fugisse da Terra e os humanos não usurpassem a pessoa que estava amando no momento.

Enviada ao ParaísoOnde histórias criam vida. Descubra agora