Capítulo 3 - Um passo a mais

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José

Era uma surpresa Miguel gostar de ler. Sempre que Beatriz ou qualquer outro familiar falavam dele, era como se fosse a criatura mais baladeira do mundo, como se as únicas coisas que ele fizesse fosse viajar, beber e ir em festas. Ser um leitor com certeza não era uma característica que eu esperava de alguém que fora descrito assim.

A última semana de junho já acontecia e vários convites para as festas juninas chegavam para nós. Beatriz queria ir até o Rio de Janeiro para comemorar com a família, enquanto Miguel insistia que ficaria na Praia Grande. A discussão durou cerca de dois dias e quatorze horas, que foi quando na hora do almoço eu resolvi me pronunciar.

- Por que vocês dois não podem simplesmente comemorar separados?

- Miguel precisa ir pro Rio, ele tem que ver a nossa mãe! Ela liga o dia todo pra saber o que esse tonto tá fazendo que não vai vê-la logo! – De fato, minha sogra havia me ligado na noite passada para saber se Beatriz estava mentindo sobre Miguel estar muito ocupado com um novo emprego, tive que mentir.

- Você já devia estar careca de saber que não volto para aquela casa! Eles não quiseram aceitar o meu jeito, então também não os aceito na minha vida! Querem saber de mim? Que liguem pra mim! Por que não me ligam? Me explique Bia, por que? – A voz de Miguel estava agressiva, mas demonstrava um grande pesar. O que teria acontecido para deixar as veias de suas mãos tão azuis quanto seus olhos?

Beatriz não lhe deu uma resposta, no fundo ela provavelmente concordava com ele. Alguma coisa havia acontecido com Miguel e sua família, mas eu não perguntaria naquele momento. Ele se levantou, abandonou na mesa um copo quase cheio de suco e foi até meu escritório, lugar onde passou a habitar depois que chegou.

Fiquei com Beatriz na mesa até que se levantasse, se eu saísse antes com certeza faria um drama achando que eu não concordava com ela. Na verdade, eu realmente não concordava, não até que alguém me explicasse o que havia acontecido. Com certeza não era uma história corriqueira.

Assim que ela se levantou e saiu dizendo que procuraria por uma feira, fui tomado pela curiosidade de saber o que estava acontecendo. Me sentia como um telespectador que acabara de ligar a televisão e não tinha ideia do que se passava com os personagens, era a sensação de ter perdido uma temporada inteira de um longo seriado.

Peguei o suco que Miguel havia largado na mesa, coloquei gelo e fui até a porta de meu escritório. Bati na porta e logo fui bombardeado com suas palavras.

- Me deixe, Bia! Eu NÃO VOU para o Rio. NÃO VOU!

- Tá bom, pode abrir agora?

- José? – Sua voz estava menos agressiva, soou como se falhasse.

- Uhum, quero pegar um livro que está aí. – Não havia nenhum livro que eu quisesse naquele momento, mas era a melhor desculpa para que ele se obrigasse a abrir a porta, afinal, o escritório era meu. Ou costumava ser.

Demorou alguns segundos, mas logo ouvi suas pantufas se arrastarem pelo chão e o trinco da porta se movendo. Quando a porta se abriu, vi que espiou para ter certeza de que eu estava sozinho, parecia uma criança se escondendo após ter aprontado alguma travessura.

- Sua irmã saiu, foi para a feira – disse pra ele antes de entrar, que com essa informação pôde relaxar os ombros – Trouxe seu suco.

- Obrigado.

Entreguei o suco pra ele e fui até uma caixa na minha estante, fingi procurar por algum papel para que ele não notasse minhas reais intenções. Miguel se sentou na pequena cama onde eu costumava dormir quando escrevia até muito tarde e ficou me encarando com uma expressão de "O que ele está procurando? Tinha que ser agora?".

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