Miguel
O forte calor do Brasil estava iminente no momento que desci do avião, o que era estranho se considerássemos que era um dos meses mais frios por aqui. Eu era capaz de sentir o Sol ardendo contra minha pele exposta, devia ter me preparado melhor para um pouso em São Vicente.
Levei cerca de vinte minutos para chegar no apartamento de Bia, que ficava na Praia Grande. O prédio era bem mais alto e chique do que eu havia imaginado, o tal do José Henrique devia ser bem rico para morar num lugar daqueles, pois de acordo com o que me contaram, Bia não recebia muito com aquela revista online.
Era pra eu estar em Seul se meu amigo não tivesse perdido o apartamento dele numa aposta. Era uma chateação trocar a Coreia do Sul para ficar no apartamento da irmã casada, mas era melhor do que voltar pra nossa casa no Rio. Ninguém merece ficar recebendo visitas de todos os parentes perguntando sobre como é o "estrangeiro".
Toquei a campainha e minha irmã abriu imediatamente. Quase fui derrubado pelo abraço dela, mas admito que estava com um pouco de saudade. Bia era como uma segunda mãe pra mim, mesmo tendo apenas dois anos a mais que eu.
- Como você tá? Fez boa viagem? – Ela estava eufórica enquanto me ajudava a colocar as malas na sua sala.
- Eu estou bem, mas essa viagem foi bem cansativa. Tem café?
- Tem sim, vou pegar pra você! – Minha irmã foi correndo pra cozinha. Ela continuava a mesma: cheia de energia e sempre disposta a dar amparo aos outros. Ela logo voltou com uma xícara de café preto – Fiz logo que eu soube que chegaria cedo, sei que adora um café quente e forte.
- Obrigado Bia, só você mesmo pra me mimar assim! – Dei uma volta pelo apartamento dela, era bem bonito – É um belo apartamento, irmã. Só precisa dar uma animada por aqui, é tudo muito... hum, branco.
- Sabe que gosto das coisas assim, passa uma sensação de limpeza. José pensa como você também, o escritório dele, onde você vai dormir, é bem mais colorido.
- Vou dormir num escritório?
- É como um quarto, tem até uma cama. É o lugar onde José costumava escrever os roteiros dele, mas ele parou.
- Hum, por que ele parou?
- Não sei direito, parece que ele não sabia como terminar, aí resolveu focar na fotografia.
- Deve ter faltado inspiração trancado aqui – Notei que a fresta da varanda estava aberta, fui até lá, mas a porta não abria – Tá emperrada, me ajuda aqui?
- É assim mesmo, olha só! – Com um único tranco ela abriu a porta por inteira e logo já estávamos desfrutando de uma bela visão do mar. Bia pegou a xícara da minha mão e voltou para a cozinha, enquanto permaneci ali sentindo aquela prazerosa brisa.
- Finalmente voltou, o Miguel já chegou! – Era a voz de Bia, o marido dela devia ter chegado.
Ele parecia ter corrido uma maratona, estava todo suado e com uma expressão de quem podia correr muito mais. Era um homem grande e robusto, muito mais bronzeado que eu e minha irmã.
Fui para sala cumprimenta-lo e seus olhos pararam nos meus. Eu costumava receber olhares sérios de pessoas mais velhas, mas a expressão no rosto dele era ilegível. Pensei até, por um segundo, que já nos conhecíamos, mas eu com certeza me lembraria se já tivesse visto aquele rosto antes. Era memorável.
Me aproximei para poder vê-lo melhor e cumprimenta-lo, mas parecia que a cada passo que eu dava aquela sensação aumentava. Sorri na esperança de quebrar o clima e o cumprimentei, parece que funcionou.
- Muito prazer, Miguel – A voz dele parecia, estranhamente, nervosa. No entanto, sua mão apertou firmemente a minha, confirmando que qualquer coisa que eu tivesse imaginado era mera impressão.
- Bom, agora que vocês já se conhecem, eu vou no mercado comprar queijo para colocar na lasanha que eu montei pro Miguel – disse Bia enquanto pegava sua bolsa e chave – Comportem-se!
- Pode deixar! – Falei qualquer coisa para não deixar apenas o silêncio entre nós, mas parece que José não pensou da mesma forma, pois apenas se virou e foi para onde Bia havia dito ser o banheiro antes.
Demorei para arrumar minhas coisas no escritório do esquisitão. Era um cômodo grande, mas estava tão cheio de livros e estatuetas, que parecia menor. Aparentemente, José era bem mais comum por dentro.
Quando saí do escritório, vi que Bia já havia voltado e que estava na cozinha. José estava na sala com um livro, acreditei ser o melhor momento para puxar um assunto e não ficar com aquela nuvenzinha pairando sobre os meus pensamentos.
- E aí? – Foi tudo o que pensei em dizer. Ele imediatamente ergueu os olhos para mim, mas manteve uma expressão séria.
- Oi? – E agora? O que eu devia falar pra ele?
- O que está lendo? – Me aproximei e sentei na poltrona ao lado dele.
- O Morro dos Ventos Uivantes.
- Da Emily Brontë?
- Sim, já leu?
- "Meus grandes desgostos neste mundo são os desgostos de Heathcliff, e acompanhei e senti cada um desde o começo: o que me mantém viva é ele."
- Isso sim é uma novidade, não sabia que gostava de ler.
- Eu gosto, mas em especial este. Gosto da maneira como o Heathcliff ama Catherine com tanta devoção – pronto! Havia conseguido um assunto em comum com ele, estava mais tranquilo.
- Não acha meio doentio?
- Por que acharia?
- Ela o trocou por Linton só por ele ser pobre e, mesmo assim, ele a perdoa e a ama loucamente – José me olhou nos olhos e pela primeira vez notei que eram castanhos chocolate, tinham um tom diferente que os deixavam em destaque.
- Acredito que quando se ama sempre há um risco de cometer loucuras. Se ele a amava mesmo, por que perder tempo com coisas como orgulho? Faria o mesmo que ele.
- Então é tão louco quanto ele, Miguel – José indiciou um sorriso em seu rosto, mas não o completou. A maneira como ele disse meu nome mostrava um certo desconforto, como se estivesse tentando se acostumar com a palavra.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Bia nos chamou para comer e não nos falamos mais. Ela ficou falando sobre a receita da lasanha e sobre como os seguidores dela eram queridos e atenciosos.
Quanto aos meus pensamentos, ficaram com Heathcliff. Seria verdade o que José disse? Seria eu, um dia, tão louco quanto Heathcliff por Catherine?
Seria eu capaz de qualquer coisa? De tudo? Por algo tão incompreensível?
Por amor?
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Como me vejo em você
RomanceE se o sentimento mais terno que já sentiu em sua vida fosse visto como um pecado? Seria você capaz de abandonar um paraíso pela pequena chance de não cair em desgraça? José é um roteirista, Miguel é um viajante. José é caseiro, Miguel adora uma fa...