Trinta

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Karol S.

Abri os olhos lentamente e esperei que a dor viesse, mas ela não veio. Não existia incômodo, sangue ou cheiro de gasolina.
Estava tudo muito tranquilo.

Uma luz forte pairava sobre o meu rosto e isso dificultava ainda mais a minha árdua missão de enxergar, então me virei de lado, jogando as pernas para fora da cama na qual estava, sentindo a pontinha dos dedos roçarem no piso gélido.

Só quando me firmei sobre meus pés foi que me dei conta do alvoroço que me rondava.

Fui cambaleando para o canto, afastando-me da cama, observando de modo assombrado o vai e vem maluco de pessoas que cercavam o corpo jogado ali.
Estavam proferindo tantos termos complicados que fui incapaz de compreender; mas não demorei muito para me dar conta de que aquelas pessoas eram médicos e enfermeiros. A maioria murmurava ordens, outros pegavam pinças e costuravam...

Eles falavam sobre pressão arterial, batimentos, infecção...

As palavras iam se perdendo dentro do barulho incessante dos aparelhos que cercavam a cama.

Ousei andar até eles, chegando perto o suficiente para espiar por entre os corpos ágeis que investigavam o motivo de um sangramento contínuo; meu cenho foi se franzindo na medida em que fui reconhecendo aquele corpo, aquelas roupas rasgadas e o rosto pálido que era coberto por uma máscara de oxigênio.

Sou eu. – Pensei, atônita.

Talvez eu tenha guinchado como um animal ferido, mas não tinha certeza disso.

Olhei para os lados, desesperada.

Ninguém me via ou ouvia. Estavam concentrados numa coisa que não tinha sentido. Eu me sentia bem.
Aquele corpo estava bem. Ou não?

Mas eu me sentia ótima...

Levei a mão até a parte de trás da cabeça e tateei o buraco que havia ali outrora, entretanto, ao afastar os dedos, eles permaneciam limpos, imaculados demais para que alguém pudesse crer que havia qualquer machucado.

O resto de mim permanecia em perfeito estado.

Mas porque eles não percebiam isso?

Ouvi um murmurar ininterrupto e me virei, curiosa.

Havia um rapaz parado num canto. Um rapaz de traços sutis, de aparência surreal demais para ser humano.
Ele parecia uma estátua daquelas que vemos em catedrais. Muito embora não tivesse a pele branca como a matéria que usavam para fazer as estátuas, mas sim uma pele negra, lisa, brilhosa demais para não ser idolatrada; seus dentes brancos apertavam o lábio inferior entre uma palavra ou outra. O rapaz trajava uma camiseta branca e uma jaqueta preta, mas não foi isso que me chamou a atenção...

Não era só seu traje que o diferia dos outros médicos, mas sim as longas e majestosas asas que se esticavam para os lados, ocupando boa parte da sala, tão douradas quanto ouro, reverberando um poder que me fazia querer ficar de joelhos e chorar.

Era forte demais para sair imune.

Eu não estava louca! Foi ele! Foi ele que estava na estrada!

─ Você! – Balbuciei e esse ato o assustou.

Ele arregalou os olhos e depois os estreitou.

─ Eu?

─ Eu te vi na estrada! Meu Deus! Era você mesmo! ─ Apontei para ele com o dedo trêmulo, assimilando, tentando não parecer maluca. ─ Como você fez aquilo? Como... Como está aqui? Porque te deixaram entrar? Está me vendo, não é? Está vendo que não estou ferida, certo?

AMAROnde histórias criam vida. Descubra agora