Capítulo 27

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O remorso latente
É o pior de todos os fantasmas

***

Tão logo a noite cai, trazendo a tradicional paz e a densa névoa da floresta, os irmãos Faucheux, Jeannot e Anselme, entornavam o que restava do vinho em seus copos se preparando para visitar Marcus uma última vez. Caminham lentamente pela estrada deserta levando os cavalos pelas rédeas temendo não conseguir montar tal era seu estado de embriaguês.

A comitiva para em frente a silenciosa residência, uma rápida olhada nos arredores confirma que é seguro invadir. Sacam da bainha suas facas e destroem a porta usando a força dos pés. O estouro da entrada faz tremer a casa e acordar Marcus de seu pior pesadelo, jogando-o indefeso imediatamente em outro, sem tempo de pestanejar. 

A casa está deserta. Uma vela é acesa para confirmar o que parece óbvio, Marcus não está ali.

***

- O rato deve ter visto quando chegamos e fugiu. Esbraveja Anselme enquanto crava a faca na mesa.

Jeannot vai até a cama levando a vela. Embaixo dele Marcus vê a luz trêmula recortar as frestas do assoalho, de onde uma poeira fina descia em forma de pequenas cascatas indo em sua direção:

- Aqui! - Chama Jeannot.

- O que é isso? - Questiona o outro.

- Parece um vestido, há mais alguém aqui com ele? - Pergunta enquanto levanta a peça de roupa, analisando-a contra a luz.

- Se pertencia a alguém parece que já morreu. - Ri Alselme apontando para o corte no vestido enquadrado por uma mancha escura.

- É mais fácil alguém ter esfaqueado Marcus enquanto ele vestia isso, do que ele ter assassinado alguém.  - Zombou Jeannot jogando o vestido, após amassa-lo, no assoalho.

Uma onda de poeira nasce quando a peça de roupa atinge o chão, criando uma grande cascata de poeira que desce na direção do escondido rapaz fazendo-o quase espirrar.

- Ouviu isso? - Alerta Anselme levando o dedo indicador à boca pedindo silêncio.

Nada acontece nos próximos segundos, apenas o som do vento que inunda a casa com a neblina da floresta.

- Está ouvindo coisas Anselme? Vamos embora daqui. Dormiremos na estalagem e amanhã tentamos novamente.

- Não podíamos esperar ele por aqui mesmo? - Indaga Jeannot.

- A cama é minha, se você não se importar em dormir no chão,  podemos ficar.  - Diz enquanto se joga sobre o leito Anselme.

Uma chuva de poeira desce no porão, contudo Marcus consegue evitar, por hora, um novo sinal de alerta.

- Estou todo quebrado dessa viagem, vamos para a estalagem. - Conclui Jeannot. Enquanto vasculha a casa, se depara com a panela ainda morna sobre o fogão.

- O cheiro não é dos piores e pelo calor nosso rato fugiu não faz muito tempo.

Lutando contra seu corpo bêbado Anselme tenta se levantar, enquanto Jeannot guiado pela sede que acompanha os embebidos, tal como os fracos de sentido, entorna todo o liquido da panela, deixando parte escorrer pelos cantos da boca. Marcus não resiste a mais uma nuvem de pó e espirra contido sob o assoalho.

Enquanto Anselme pula da cama e corre para recuperar sua faca cravada na mesa, Jeannot agoniza como um animal ferido sentindo os efeitos da poção dos sentidos e cai desmaiado aos pés do irmão, que mantendo a faca a sua frente busca respostas para o que está acontecendo.

- Levante Jeannot! Ele está aqui. - Sussurra chutando o corpo inerte do irmão.

A falta de reação o faz soltar a faca e tentar acordar o irmão chacoalhando-o, estapeando-o e por fim conseguindo a reação desejada quando lhe joga a água de um pote.  Jeannot acorda feito um demônio gritando e debatendo-se até conseguir levantar. Ao ficar de pé esfaqueava fantasmas que só ele via, cortando o ar com sua faca.

- Saiam de perto de mim! - Grita enquanto crava a faca em mais um espirito imaginário.

- Que diabos você está fazendo! Pare com isso! - Pede Anselme se esquivando das investidas insanas do irmão.

Aos olhos de Jeannot, seu irmão se transfigurou na própria imagem do demônio e agora era ele que sua faca perseguia.

- Pare com isso Jeannot, abaixe essa faca. – Ordena Alselme já perdendo a escassa paciência e jogando contra o louco uma cadeira.

Na escuridão do esconderijo Marcus ouve tudo sem entender o que pode estar acontecendo, temendo ver a qualquer momento a tampa do alçapão ser aberta e sentir os olhos dos irmãos Faucheux lhe perfurar a alma.

Até que em uma das investidas de Jeannot a faca encontra o braço do seu irmão,  fazendo o viscoso liquido escorrer no assoalho e transformando Anselme no demônio da visão,  que parte para cima de Jeannot fazendo-o desmaiar após atingi-lo com uma cadeirada.

Anselme desaba exausto ao lado de Jeannot enquanto analisa sob a fraca luz o corte aberto no seu braço.  Não entende o que aconteceu ali, mas sabe que não foi nada normal. Decide abandonar por hora a missão e pensa que de alguma forma o recado foi dado. Ficou claro que os Faucheux querem ver Marcus morto.

Arrasta o corpo do irmão e o coloca sobre o cavalo, monta no seu e segue pela estrada, desaparecendo após poucos metros na escuridão da noite, fundindo-se a neblina. Marcus ouve a luta terminar e o passo lento dos cavalos partindo. Acredita que está a salvo por enquanto, mas aguardará pacientemente o sol vir lhe chamar.

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora