Capítulo 20

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Quando meu corpo arde em chamas
Minha mente busca o alívio no rio que corre em você

Minha visão estava turva. A pouca luz cobrava o seu trabalho com lágrimas que meus olhos pagavam deixando claro que não tinham a intenção de desistir. Folheei o livro e confirmei que havia apenas mais uma página com o símbolo na margem inferior, e este repousava pacientemente na próxima. O frio lançou ondas pelo meu corpo e procurei algo para me cobrir. Meus pensamentos foram invadidos por uma série de imagens. Todas nascendo gigantescas e desaparecendo no fundo de um poço negro que parecia terminar dentro de mim. Lembrei-me do meu pai, de Eshe, de Anabelle, de Dane.

Não me sentia nada bem, reflexo de um dia em que a sorte não me sorriu, ou talvez tenha sido ignorada. Não era mais um homem completo, partes minhas foram distribuídas pelo mundo como espólios de uma guerra onde fui derrotado. Perdi a batalha para mim mesmo, por não conhecer o inimigo, ou pior, por acreditar que conhecia. Voltei meu olhar apático para o livro e virei a página sem tocar no símbolo, não precisava de uma nova rajada de vento para me congelar.

“Hampshire, 1669

Há alguns meses já tenho sobre os ombros o peso de quatorze anos e não foi quando comemorei a data que Dario Hernandez Vega me presenteou com a sua permanência em terra. Foi em um dia qualquer e de maneira inesperada, inundando nossa casa com a alegria que a notícia trouxe. E hoje enquanto escrevo sobre aquele momento as lágrimas me acompanham, e infelizmente não são apenas lágrimas de alegria. Tenho certeza que, mesmo que eu viva mil anos, esse dia será lembrado como o melhor e o pior de toda a minha vida.

O comunicado do meu pai pegou todos de surpresa, Amée, jamais acreditou que isso fosse de fato acontecer, a euforia nos fez esquecer tudo naquele dia. Queríamos apenas comemorar e aquele almoço se entendeu por horas, deixando adormecido no fundo da minha mente meu encontro marcado com Alberta. 

Eu nunca havia deixado de visita-la, até debaixo de chuva. Se havíamos combinado, ela tinha certeza que eu apareceria por lá, mesmo com a alma lavada por um temporal. Notícias da presença do inquisidor Laurentius rondavam a região e eram espalhadas como folhas em todas as direções. 

Meu atraso povoou o coração da Alberta com as piores lembranças que a união de um inquisidor e de uma menina poderiam lhe remeter. E seguindo seu instinto saiu de sua caverna para me encontrar. Alberta Tolvaj não me encontrou, mas o inquisidor sim. 

Quando viu os cavalos se aproximandoe não teve tempo para fugir. Foi rapidamente cercada pelos três e o inquisidor não perdeu tempo ao partir em sua direção. E foi assim que ela me relatou quando a invoquei do mundo dos mortos:

- “Veja só quem temos aqui.” Declamava alegre o inquisidor aos seus ajudantes enquanto segurava Alberta pelo pescoço deixando apenas a ponta dos seus pés tocando no chão.

O ódio rompia por dentro de Alberta e era maior que qualquer medo que ela pudesse ter da morte, apesar da situação, ficou feliz por estar errada e não me encontrar ali:

- “Vim para te buscar, Laurentius, Conheço algumas dezenas de almas que vão adorar revê-lo.” Disse a bruxa quase sem respirar enquanto encarava o inquisidor e vendo despertar dentro dele seus piores medos.

- “Amarrem-na! Vamos terminar com isso aqui mesmo. Para todos os fins você já está morta há muitos anos. Sinto lhe decepcionar, mas não poderei queima-la em frente a multidão.”

Não demorou até que Alberta estivesse presa a uma árvore e cercada por galhos secos em uma pira improvisada. Enquanto preparavam a fogueira, a bruxa continuava a minar a mente de Laurentius com suas premonições e maldições:

- “Volto em breve para buscar sua alma demônio e tenha certeza que isso não vai demorar.”

- “Queimem-na! Ou terei de lhe arrancar a cabeça antes de acender o fogo.” 

A ordem ecoou pela floresta e eu a ouvi, quando tardiamente caminhava ao seu encontro, trazendo nas mãos um prato de comida. Agachei-me atrás de uma rocha quando avistei o grupo, Alberta me viu e negou lentamente com a cabeça, dando a entender para eu não aparecer. A senhora da floresta disfarçou o movimento lançando mais uma dúzia de maldições sobre o inquisidor enquanto as chamas começaram a nascer.

Rajadas de ventos circulavam o grupo, levantando rodopiantes folhas secas e quase extinguindo o fogo, ao mesmo tempo em que nuvens escuras se aglomeravam no céu. A notícia já havia se espalhado e a natureza tinha vindo lhe salvar.

- “Rápido com isso seus incompetentes, será que eu mesmo tenho que acender essa fogueira?” Disse isso tomando um galho em chamas da mão de um dos ajudantes e espalhando o fogo enquanto rodeava a arvore.

As chamas cresceram, queimando parte do manto de Alberta e revelando a pele enegrecida em erupção, ao ser atingida por chicotes flamejantes cada vez mais frequentes. Manteve-se altiva e praguejando enquanto pode, até o momento em que as chamas atingiram a linha de sua cintura e a dor daquele momento foi refletida em seu rosto. Aquela expressão me queimou por dentro, Meu corpo tremia com um misto de pavor e ódio, minhas pernas queriam correr até lá e salvá-la, mas tinha certeza que uma menina de quatorze anos seria apenas mais uma vitima no final do espetáculo.

Chorei e trouxe comigo as lágrimas do céu que encharcaram a comitiva mórbida. O fogo não resistiu ao lamento e aceitou que não deveria matá-la extinguindo-se. No meio da fumaça, Alberta, ainda agonizava e continuava a amaldiçoar seu carrasco, fazendo-o descer do cavalo, desembainhar a espada e cravá-la no sua garganta até a ponta encontrar o tronco da arvore.

- “Cale-se e morra de uma vez bruxa maldita.” Sussurrou o inquisidor ao aproximar a boca do ouvido de Alberta.

- “Até breve.” Foram as suas últimas palavras já acompanhadas pelo sangue que lhe inundava a boca e escorria lento pela espada reluzente e cravejada por centenas de gotas de chuva.

Quando seus olhos enfim se fecharam o meu chôro pôde ser ouvido e três cabeças olharam na minha direção ao mesmo tempo. Corri deixando para trás a comida. Ouvi passos correndo em minha direção e sendo interrompidos por uma ordem do inquisidor:

- “Deixem-na ir. Tratamos desse assunto...” Foi o que eu ouvi enquanto me afastava correndo do grupo.

Cheguei em casa toda molhada e aos prantos e precisei revelar tudo que havia acontecido. Na floresta o corpo de Alberta era enterrado longe dos olhos de todos. Como Laurentius mesmo havia dito, ela já estava morta há muitos anos.“

Enquanto acalmava meu coração li na margem interna mais uma frase em uma língua estranha, a última de acordo com as minhas pesquisas:

) Ibi sanguis

Decidi que era hora de descansar, apesar de acreditar que não conseguiria dormir tão rapidamente quanto gostaria. Os gritos de Alberta ainda vão ecoar por muito tempo na minha mente.

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