Capítulo 15

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Alimentando falsas esperanças
Mantenho vivo o monstro dentro de mim

Sento-me à mesa e abro lentamente o livro. Sei que um dia não mais o poderei lê-lo e isso me angustia. Hoje as letras ainda sorriem para mim, mas em breve só restarão as minhas lágrimas sobre suas paginas em branco.

"Nos dias seguintes ao meu aniversário,  uma nova viagem levou meu pai e uma nova luz passou a me guiar. Independente do seu aviso voltei a floresta à sua procura. Após o almoço perguntei para Amée se eu poderia levar um pouco de comida para uma pobre senhora que vivia sozinha na floresta.  Por motivos práticos omiti que a mesma era procurada por bruxaria.

Meu gesto comoveu minha mãe que prontamente preparou uma refeição e a depositou em minhas mãos.  Segui o mesmo caminho na floresta, aguardei algum tempo onde eu a havia encontrado, mas voltei para casa de posse da comida. Repeti esse mesmo ritual dias seguidos e sempre voltava com as mãos tão ocupadas quando tinha ido.

Não recordo em qual tentativa estava, se era a sexta ou a sétima, só recordo que quando iniciei meu retorno após mais uma incursão em vão,  ela apareceu na minha frente:

- Insistente você menina, já vi que não irás desistir até me encontrar, pois bem aqui estou. - Disse Alberta Tolvaj contrariada e feliz.

Abracei a senhora, voltei a me ver refletida nos seus olhos negros e ganhei um pouco mais da sua vontade de viver. Quando desfiz o abraço tratei de lhe dar a comida:

- Minha mãe preparou para você. Acho que a essa altura ela já não deve mais acreditar que você existe.

- E quem deveria esquecer-me não o faz por quê? - Emendou aceitando a comida e roubando do ar o aroma daquilo que agora aquecia as suas mãos.

Disfarcei olhando o verde cenário buscando no ar a resposta que não existia na minha mente.

- Venha pequena...

- Lizandra, senhora.

- Venha por aqui pequena Lizandra. Não é seguro ficarmos tão expostas assim.

Andamos algum tempo entre as árvores, mais alguns minutos margeando em pequeno rio e próxima a pequena cascata que se formava na sua nascente. Voltamos a nos embrenhar na densa floresta rumo a uma formação rochosa impossível de escalar.

Atrás da face de uma rocha escondia-se a entrada da caverna, que há anos vinha servindo de refúgio para a senhora da floresta. Alguns crânios de animais ornamentavam a entrada sobre o desenho de símbolos pagãos nas paredes. Isso me faz parar:

- Medo? - Ri Alberta. Essa é a intenção! Assim mantenho os curiosos longe de mim, mas pode entrar que o seu mundo tem bem mais perigos que o meu.

Desviando o olhar e os pés das cabeças de ossos entrei no seu negro labirinto. Algumas curvas depois uma abóbada parcialmente iluminada por aberturas na rocha mostrou-se. O lugar continha uma névoa em suspensão que destacava as lâminas de luz e as suas origens.

No chão ao canto uma fogueira inerte enegreceu a parede e tudo mais que estivesse próximo e penduradas pelas paredes, ervas aguardavam para serem usadas. Do outro lado um amontoado de palha e uma manta em farrapos deixavam a impressão que ela dormia ali.

Enquanto eu esquadrinhava o ambiente, Alberta esquadrinhava a comida. Tentava adivinhar o sabor de cada pedaço antes de degustar e viajava ao passado quando o sabor da comida se espalhava pela boca. Fiquei pensando o quão sofrida e solitária era sua vida e entre uma colherada e outra me respondeu:

- Já fui muito feliz, se me permite interromper seus pensamentos. Tive uma bela família e uma filha linda e ruiva como você, mas minhas escolhas não foram as certas para manter minha ordem familiar. Ouvi meu coração e apesar de tudo acredito que seguiria o mesmo caminho, mais cautelosamente é verdade.

Abandonei minha família quando vi que minha presença poderia levar todos à ruína.  Ser perseguida pela igreja não é vida para ninguém. Há olhos e ouvidos em todos os lugares e não se pode confiar em ninguém.  Não há como conviver próximo a alguém.

De uma maneira natural, pequena, você e seus cabelos me enfeitiçaram, não consegui evitar a vontade de ficar próxima a você e sentir a presença da minha filha.  Certas escolhas nos marcam para sempre, Lizandra, e mesmo sabendo de todo o perigo que ser vista comigo pode lhe causar, lhe agradeço por me trazer um pouco de felicidade novamente.

Continuou comendo e tentando disfarçar as lágrimas que eu fingia não ver. Quando terminou conversamos sobre várias coisa e foi nesse momento que ela me revelou:

- Talvez você não esteja lembrada, mas não foi na floresta que você me viu pela primeira vez. Nossa apresentação aconteceu quando eu era arrastada pelo inquisidor Laurentius Varinius em direção ao porto.

Naquele dia, já muito machucada, fui deixada acorrentada junto com os cavalos, enquanto Laurentius tratava de algo mais urgente.  Já havia perdido as esperanças e encarava a fogueira como minha libertação.  Mas quando o calor da morte já me parecia certo, minha corrente começou a ser golpeada pelo cavalo do inquisidor.

Algumas patadas depois a corrente soltou do tronco e mostrou-se livre a minha frente, fugi arrastando minhas dores e as algemas que o tempo e a magreza trataram de soltar. - Olha para a parede onde as correntes estão penduradas.

Fico feliz em saber que a visão de dor que me acompanhou por anos acordada ou nos sonhos, teve um final diferente do imaginado. 

A conversa teria entrado noite afora, mas Alberta acompanhou-me de volta quando o sol ameaçava se por. E foi sob a luz rubra do final do dia que a vi a senhora Tolvaj voltar a ser parte da floresta."

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora