Capítulo 5

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Tão efêmero como tudo que sinto
É esse mundo feito de fumaça 

O som distante e rouco de um trovão anuncia o final da tempestade. Aos poucos as últimas gotas de chuva despedem-se do telhado e as folhas das árvores acenam em resposta. Volto do meu recente passado, ainda sentindo a fraqueza que minha enfermidade me causou. Pareço estar com febre, checo a temperatura e constato que minha temperatura está normal.

Demoro um pouco para voltar completamente ao presente, a lembrança do meu pai e de Anabelle, tão próxima até poucos minutos atrás  dissipando-se no ar ao meu redor, assim como toda a minha antiga vida. Por tanto tempo desvalorizada, agora anos distante me parece perfeita. Mas tão logo a névoa dos meus pensamentos desaparece vejo a janela da cabana sem a cortina de chuva a minha frente, aproveitarei o momento e partirei para a vila. Dobro cuidadosamente o vestido, coloco sobre o livro e atravesso a janela.

Não irá demorar para a noite chegar, cobrindo tudo com escuridão e lembranças.  Despeço-me da última morada de Lizandra, e sigo pela floresta o caminho de volta. Aos poucos, a pequena casa vai ficando para trás até fundir-se completamente ao verde do cenário e descansar sob o manto do tempo, longe de tudo e de todos.

O caminhar de volta, com a terra encharcada pela chuva e por novas possibilidades, parece-me muito diferente da cena vivida há poucas horas, quando a falta de esperança movia meus pés para o desconhecido. Apesar de inalterada, minha situação atual ao menos passou a ter uma inusitada e curiosa missão, descobrir algo mais sobre a moça do passado.

Pisando sobre poças resultantes de uma chuva generosa, começo a ser atacado por uma grande angústia e sinto como se até as árvores quisessem me segurar. Algo parece querer fazer-me eu parar de andar e minhas pernas ganham um peso descomunal. Cada passo nasce de um enorme esforço e ao atingir o solo alagado espalha uma cortina de água a metros de distância.  Até o momento que eu não tenho mais forças para retirar meu pé do chão.

O vento muda de direção e uma rajada fria parece atravessar meu corpo, formando uma estrada de névoa que corta a floresta, transpondo-me. Paralisado, olho assustado ao redor buscando entender tudo aquilo. Ouço passos. Alguém corre em minha direção e movo meu olhar para a direção dos sons. Viro minha cabeça para direita e ela surge.

Corre desesperada vindo ao meu encontro uma moça de incandescentes cabelos longos, ofegante e formada por um vapor branco que vai deixando seus passos no ar.  Não tem uma forma definida, tem os traços de uma mulher, mas vendo de longe parece não ter rosto. Meu coração acelera, sou tomado por um medo que me petrifica e mesmo que quisesse, não poderia desviar o olhar.

Guiada por seus passos rápidos, passa por dentro de mim. Respiro-a, sinto seu cheiro e sua angústia. Lizandra. Leva consigo minha atenção trincando folhas invisíveis no ar, fugindo desesperada. Tão logo perco sua visão, engolida pela mata, novos sons de passos nascem na trilha de névoa.  Desta vez vejo dois cães cortando a fumaça com velocidade e latindo insistentemente. Posso colher apenas raiva deles quando me atravessam.

Desaparecem no encalço da moça e há novos ruídos na trilha, desta vez de um homem que segue a pequena matilha. Sua presença me trás um misto de ódio e medo tão logo passa correndo por mim. Acompanho-o até que sua imagem se confunde com a trilha de vapor. Não ouço mais nada por algum tempo, mas a estrada do passado continua ali e eu continuo fazendo parte do trajeto imóvel.

O silêncio é quebrado por passos largos que se aproximam rapidamente, um homem, montado surge na fumaça trazendo com ele uma sensação de urgência e tão logo se desloca arrasta consigo a trilha. Sou atropelado pelo equino e segundos depois, este homem deixa comigo o que o move: amor e medo. Tão logo o cavaleiro passa levando a estrada imaginária, meus movimentos retornam e o sentimento deixado parece que fará meu coração explodir.

O semblante da floresta muda. Parece agora querer que eu siga e o obedeço, tão logo o amante de vapor e o seu cavalo se dissipam na mata. Algum tempo depois, ainda perdido na fumaça dos meus pensamentos chego à vila. 

O sol já beija a ultima montanha no horizonte prometendo voltar amanhã e o vermelho tinge o cenário. Meus passos me guiam até o armazém. Preciso de algo para comer.

Na porta do estabelecimento, um senhor de idade avançada olha para o horizonte com seus olhos esbranquiçados pelo tempo e pela doença. Horizonte que ele imagina que esteja lá, já que parece não ser mais capaz de vê-lo. Atrás do balcão uma jovem com lágrimas nos olhos me recebe com um sorriso invisível e com um ar de frustração tão grande que quase me empurra porta afora.

Insisto perfurando seu sentimento e sigo na sua direção, cruzando pelo caminho com uma série de produtos cobertos por fungos e bolor. O cheiro daquele lugar inóspito lembrou-me o do curtume, com a diferença que aqui vendem produtos para comer e esse cheiro em nada deve ajudar nas vendas.

Contento-me com um pão cuja metade parece que poderei comer e uma fruta. Troco moedas por lágrimas que escorrem do rosto da moça, mas não tenho nenhuma palavra para lhe consolar. Deposito temporariamente o livro sobre o balcão, deixando a primeira página exposta propositalmente. A garota corre os olhos pela página amarelada e parece estar lendo, mas não fica tempo suficiente para eu ter a confirmação.

Com uma nova dúvida na memória, despeço-me agradecendo. Mas tão logo tomo o rumo da porta sou novamente paralisado. Vejo-me saindo do armazém como uma visão vaporosa do meu corpo. Tudo está imerso em um branco inconstante e tão logo meu eu de fumaça chega até porta é agarrado pelo ancião que grita:

- Lizandra!

Minha visão volta ao normal e constato que os produtos do armazém não estão em tão mal estado como pareciam, que o senhor da porta parece ter a visão normal e não há lágrimas molhando o rosto da moça que acabou de me atender, que neste momento me analisa com um olhar interrogativo e dispara:

- Algum problema? O senhor está bem?

- Está dispensada do senhor. - tento brincar. - Estou bem sim, só um mal estar temporário. - minto.

Nesse momento o senhor está virado me olhando também. Observa o livro e o tecido dobrado em minhas mãos, a curiosidade brota na sua face, mas se mantem em silencio.

- Desculpe minha falta de jeito na chegada. - falo para a garota estendendo a mão na sua direção. - Já não estava me sentindo bem.

- Marcus Ravensdale, recém-chegado e pelo visto precisando descansar. - Digo sorrindo.

- Dane Kinsey, notei seu espanto na chegada, parecia com medo e estava a ponto de fugir, foi o que consegui notar. - Responde com um ar de riso.

Observando-a agora, fora do meu mundo de fumaça, vejo uma jovem bonita. Seu cabelo escuro e curto passa um ar masculino inicialmente, mas essa impressão já foi quebrada.

- Achávamos que você tinha morrido. - Emenda. - Há dias vimos você chegar e desaparecer na antiga casa dos Dundee. Tivemos a impressão que em breve o mau cheiro tomaria conta da casa e o encontraríamos enforcado.

- Que boa impressão devo ter passado, ainda bem que são melhores vendedores que videntes, são tempos difíceis Dane, mas o tempo tratará de curar. - Digo buscando concluir a conversa.

Ela concorda com um aceno de cabeça que retribuo e sigo para casa. Já estava há alguns passos do armazém quando o senhor dispara:

- Se mudar de ideia temos cordas fortes aqui.

- Lembrarei-me disso senhor, é sempre bom fazer novos amigos. - Respondo sem olhá-lo, seguindo meu caminho.


O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora