Capítulo 19

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Meus fantasmas despertam
Quando a cortina da noite começa a descer

Fiquei algum tempo analisando aquela frase que terminava com o seu nome, mas desisti algum tempo depois. A esperança é que algumas páginas à frente tudo isso seja devidamente esclarecido. A noite havia caído rapidamente e uma névoa fina cobria o chão, nascida no interior da floresta e caminhava lenta pela a estrada. Aos poucos o hálito frio da terra invadiu a casa pelas frestas e roubou o pouco calor que ainda restava em mim. A imagem de Dane invadiu minha mente quando fechei a janela e lamentei que o acaso de encontrá-la perambulando pela rua hoje não aconteceu.

Voltei para o livro procurando alguma resposta, a razão que parecia me escapar para continuar, e sentindo meus fantasmas do passado cada vez mais presentes. O gosto amargo de Anabelle preencheu minha boca, nublou meus pensamentos, drenou a pouca força que a poção dos sentidos parecia ter me imbuído. 

Virei a página tocando no símbolo da margem e uma corrente de vento invade o lugar, a chama da vela mostra sinais de que iria ser vencida, mas renasceu inclinada na minha direção ainda sendo levada pelo ar frio que soprou da rua. O fogo trêmulo voltou a se acalmar quando a página enfim foi virada.

“Conclui após ouvir sobre a fuga de Alberta, que o medo da igreja em perder o controle alimentava e contribuía para a criação do que eles mais temiam, pessoas que acreditavam em rituais diferentes e que buscavam alternativas àquela doutrina imposta e fracamente encoberta por um véu de bondade.

A senhora da floresta me contou que vagou dias pela mata, traçou sua rota para o sul, havia decidido morrer próxima ao mar que trouxe seus antepassados para cá, ou tentar voltar a sua origem. Quem sabe a sorte decidisse lhe sorrir e conseguisse embarcá-la rumo à Alemanha para recomeçar, mas a urgência da fuga e a falta de provisões encurtaram muito a viagem. Caminhou enquanto teve forças e quando desabou exausta aceitou que sua hora havia chegado. Seus olhos se fecharam e restou apenas o silêncio que embala os mortos. Acordou sob a luz de uma fogueira ouvindo seu crepitar.

Olhos curiosos a observavam e dentre estes estavam os do líder do grupo: Attila Kardos. Há anos andavam pelas sombras da floresta, margeando rios e vilas, agregando discípulos, ou melhor, fugitivos. Aumentando o rebanho como acontecia agora com a entrada de mais uma foragida: Alberta Tolvaj. Attila a confortou, a alimentou e a convidou para acompanhar o grupo, todos empurrados para um mundo à parte pela igreja. A grande maioria só, com raras exceções, assim como os Kardos, onde além do patriarca sua esposa e filha o seguiam.

Cultuavam a natureza como a uma deusa e viviam do que ela fornecia, alguns no grupo caçavam, outros pescavam. A floresta é generosa para quem cuida dela, diziam. Aprenderam a dar muito mais valor à água do que as palavras proferidas pelos padres. Acreditavam mais nos animais do que nos homens e se não eram bruxos e bruxas quando foram injustamente perseguidos, a troca de experiências e crenças aos poucos os ia transformando. Até o ponto que assumiam o que a igreja os havia acusado de serem: magos profanos, hereges, amaldiçoados.

Nos anos seguintes Alberta destacou-se dentre os demais. A floresta parecia falar com ela e o seu conhecimento de novos remédios e venenos crescia dia a dia, mas continuava presa no seu mundo de sombras e tristezas. Não foram poucas as vezes que admirou o fogo, como se ele espelhasse os cabelos ruivos da sua menina, a essa altura já uma mulher.

Estavam acampados no silêncio da floresta, próximos ao porto onde eu morava, quando um grupo liderado pelo inquisidor Laurentius Vanirius os atacou no inicio daquela manhã, enquanto eu e minha mãe estávamos nos preparando para viajar até a casa dos meus avós. Enquanto nós dobrávamos mais uma peça de roupa para ser levada na viagem, no acampamento uma espada estava atravessando o corpo de um bruxo, ou cortando a cabeça de outro.  Alberta acreditou que a esposa e filha de Attila fugiram, ao menos foi o que ela conseguiu ver até ser atingida e cair desacordada.

Quando nossa viagem começou e as rodas da carroça começavam a girar sobre o chão encharcado de sangue do acampamento, a cabeça do líder Attila Kordos rolava despedindo-se do corpo pela última vez. Os corpos foram empilhados e o fogo ateado, Alberta foi acordada pela fumaça carregada com o cheiro de carne queimada e dos gritos daqueles que ainda estavam vivos na fogueira, enquanto ela era amarrada para ser arrastada como um troféu até a vila. Iria servir de exemplo para amedrontar todos aqueles que pensavam em ir contra a igreja. Por sorte seu destino não foi esse.

Os anos passaram rápido e muitas foram as histórias revividas por Alberta na minha companhia, muitos foram os ensinamentos que aos poucos ela foi me passando e sempre que relembro suas palavras, recordo do dia que cheguei a sua caverna e a encontrei muito doente. Ardia em febre e sequer conseguia se levantar, gesticulou para que eu me aproximasse e pediu ajuda. Um sussurro tão baixo que parecia ter origem na sua alma.

Com gestos e acenos de cabeça guiou minhas mãos para lhe trazer algumas ervas que adornavam as paredes do lugar. Separava uma fração e entregava para eu ir colocando na caldeira onde a água já havia sido depositada. O ritual com ervas repetiu-se algumas vezes, até ela apontar um pequeno pote com uma tampa que havia sido bem lacrada pelo tempo. Quando enfim consegui abrí-lo era como se o cheiro de mil demônios tivesse invadido o ambiente. Minha careta deve ter sido muito engraçada, porque mesmo sem forças Alberta sorriu. Coloquei a quantidade separada por ela na água, segurando o estomago para não fosse depositado junto. 

Por fim ela apontava insistentemente para um canto em que não havia nada, não havia ervas ou potes, só a parede e algumas pedras soltas. A insistência foi tamanha que mesmo descrente, fui até o local e comecei a apontar para tudo que eu pudesse pegar, e ela confirmou quando eu apontei uma pequena pedra negra. Ainda sem acreditar indaguei se ela estava certa do que eu havia pegado e mais uma vez ela confirmou, acalmando-se. 

Soltei a pequena pedra na caldeira e pude ouvir o ruído que fez ao atingir o fundo de metal.

Alberta acenou me pedindo para aguardar, sentei ao seu lado e pacientemente esperei enquanto secava o suor do seu rosto. Algum tempo depois a pequena pedra começou a pular dentro da panela movida pela fervura da água. Seu tilintar no metal indicava que estava pronto. Separei um pouco da minha primeira poção e lhe servi tão logo esfriou. Ela sorveu todo o liquido escuro e de aroma pouco convidativo e sua alma me pediu que a deixasse descansar, já que agora tudo ficaria bem.

No dia seguinte tive a felicidade de encontrá-la com saúde novamente e me aguardando para mais uma tarde regada a histórias sobre poções e bruxas, ou a meu ver, sobre remédios e anjos. Vê-la recuperada foi o melhor presente que eu poderia ter recebido. No dia seguinte eu não iria visita-la, Dario estaria em casa para comemorarmos meu décimo quarto aniversário.”

Conclui a leitura notando mais uma vez a presença do símbolo no rodapé e de uma nova frase próxima a costura do livro:

O ultimam scintillam vitae.

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora