Capítulo 8

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A dor que corre nas minhas veias
Mostra que ainda estou vivo

O reflexo do sonho foi reproduzido no mundo real. Com um movimento dos pés consegui empurrar um pouco a cama e explodir minha cabeça contra a parede, caindo no vão entre o móvel e as rochas da minha caverna. Uma cascata de dor desce a partir do meu crânio e começa a adormecer todo o meu corpo, meus braços ralam por onde passam e depois de pousar, apenas uma perna continua sobre a cama.

Tonto com a pancada começo a voltar a ter consciência de onde estou e o que levou-me até o chão. Ponho a mão na cabeça, pareço sangrar, o liquido viscoso e morno escorre por entre os dedos. Decido levantar e o escuro me leva a trombar muitas vezes até vencer o percurso além da cama. Sob meus pés o som do assoalho nasce diferente, inicialmente um som oco, que me fez temer cair em um buraco e alguns passos depois o som firme de sempre. Meus sentidos não devem estar funcionando normalmente, concluo.

Sento aos pés da cama, recupero o resto de consciência que me falta, acalmo meu coração do susto, a visão começa a se acostumar com a escuridão. Aos poucos o interior da casa vai sendo desenhado por agulhas de luz que a lua generosamente me envia, através de frestas nas paredes quase imperceptíveis. Empurro meu leito de volta ao lugar original e volto a deitar. Minha cabeça ainda lateja, mas sinto que o sangramento parou. Um calor calmante me invade e aos poucos me perco entre lembranças de um passado que insiste em me visitar.

“Naquela manhã um sol inspirado tingia os telhados de dourado, trabalhadores saiam aos poucos das suas casas, janelas aos poucos iam sorrindo para a luz, a vida de um novo dia mostrava-se exuberante. Alec já estava de pé pronto para sair para o curtume e estranhou meu atraso, algo nada habitual. Demonstrando um pouco de irritação, meu pai pede para a criada Bettina Lohrenz apressar-me. Seus passos vêm castigando o assoalho que range durante a sua passagem. Dona de proporções generosas e cabelos dourados, sempre presos, Bettina já faz parte da família, trabalha conosco desde o meu nascimento.

E ainda castigando o piso de madeira adentrou meu quarto, tratando rapidamente de abrir uma janela na intenção de expulsar-me dali. Tão logo concluiu a tarefa e não obtendo a resposta desejada tratou de ser mais incisiva e quando se aproximou viu meu rosto banhado de suor, fruto de ondas de frio que percorriam meu corpo e desaguavam na minha fronte. Eu tremia com se estive nu sobre a neve, minha pele estava pálida e após tocar meu rosto constatou que eu ardia em febre.

- Misericórdia! Disse ela com um carregado sotaque alemão, já tratando de fazer o assoalho ranger saindo em busca de ajuda.

Eu via apenas uns vultos e ouvia conversas fragmentadas dela com meu pai, meus olhos abriam e fechavam lentamente, criando cenas cortadas difíceis de compreender. Em um momento senti algo gelado e úmido sendo colocado sobre minha cabeça, minha fraca visão viu Bettina mais uma vez ao meu lado. Adormeci. Quando acordei havia três pessoas se entreolhando e conversando próximas ao meu leito. Acredito ter visto Austyn Barton em uma das minhas visitas ao mundo dos vivos. Ele cuidou da nossa família por muitos anos, mas não o via desde a morte da minha mãe.

Alguém ergue minha cabeça e lentamente um licor amargo me invade a boca, aos poucos vai sendo absorvido pelo meu corpo. Enquanto vago por entre o mundo dos mortos e dos vivos, ouço frases que tento entender:

- Acha que pode ser... (Alec)

- ... certo ainda, vamos acompanhar a ... (Austyn)

- ... informado. Obrigado por hora ... (meu pai)

E por fim o silencio. O tempo passou e a maré fria que percorria meu corpo dos pés a cabeça parece ter cessado. Sinto meu interior quente novamente, estou fraco, angustiado e voltando. Minha paz é quebrada por passos, desta vez leves que parecem mal tocar o chão. Pela fenda dos olhos que custam a abrir vejo Bettina e conversando com ela Anabelle:

- Venho buscar noticias a pedido do Sr. Alec. Fala isso enquanto me derrete com aquele olhar.

- Pela luz que ilumina esse quarto nosso menino está melhor. - diz Bettina levantando as mãos em agradecimento.

Anabelle sorri, concordando com a cabeça, Bettina aproveita a visita:

- A senhorita poderia ficar um pouco aqui? Não quero deixá-lo sozinho, mas tenho tantas coisas para arrumar que daqui a pouco quem cai doente sou eu. - ri meio sem graça diante da moça.

- Vou tratar de acalmar o pai do moço e se me for permitido, voltarei para render-lhe na guarda. - Falou a moça já virando na direção da porta e sumir flutuando.

Bettina concordou e continuou a velar-me. Meu pensamento congelou quando ela fez menção que iria voltar. O cansado coração deu sinais que queria recuperar-se e tratou de aumentar o ritmo, não estava mais caminhando arrastado, os passos eram rápidos, iria em breve estar correndo. 

Uma ansiedade nascia e crescia na mesma frequência cardíaca, os minutos demoraram horas para passar, até que a flutuante moça voltou. Meu coração enfim corria livre rumo a uma direção desconhecida, mas corria feliz. Com um aceno de cabeça, rendeu minha protetora e tratou de umedecer novamente o pano que cobria minha fronte, enquanto o assoalho rangia pesado ao fundo. O tempo parou quando ela recolocou o pano frio em minha testa e acariciou meu rosto. Seus dedos possuíam a força de um relâmpago que rasgou meu corpo, religando todos os sentidos.

Meus olhos ancoraram naquele rosto misterioso, enquanto ela continuava a me eletrocutar com suas caricias. Não demorou para eu estar completamente acordado e, atendendo a um pedido da minha boca, tratar de fazer os lábios dela encontrarem os meus. O chão volta a ranger próximo a porta, mas não veio em nossa direção, seguiu discreto por outro caminho. O beijo durou o tempo de uma vida ou apenas alguns segundos, não sei ao certo. Meus sentidos já não estavam mais presentes, não sabia se era sonho ou realidade. Sei apenas que quando terminou ela se foi.”

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora