Capítulo 2

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E com as asas da desesperança
Lanço-me sem destino certo 

Folhas secas invadem a cabana saltando pela janela aberta, impulsionadas por um vento apressado, que anunciava uma tempestade por onde passava. Alheio a iminente tormenta,  Marcus continuava adormecido, seu corpo repousa sobre um assoalho de poeira e lembranças, já seu espirito corre livre pela floresta do passado, não tão livre quanto ele gostaria...

“Corre por entre as árvores, sua respiração está ofegante, vozes e latidos o perseguem, folhas trincando sob os pés e galhos sendo quebrados em uma perseguição. Sente que suas forças estão no final e seu ritmo começa a diminuir, uma rajada de vento lança sobre seus olhos longos cabelos cor de fogo e uma mão com delicadeza feminina trata de removê-los. Mantem o passo e olha incrédulo para suas mãos, esse não é o seu corpo. Sente-se mais leve, mais frágil. Está conduzindo o corpo de uma jovem mulher.

Quando retorna a atenção para o percurso que faz desnorteado pela mata, precisa parar bruscamente. A sua frente brota um desfiladeiro de infinitas pedras e de uma altura que a trituraria na queda. Voltar não é uma opção. À sua direita, encravada em uma formação rochosa, uma fenda revela a entrada de uma antiga caverna parcialmente desmoronada. Cair e morrer, voltar e morrer ou entrar e tentar viver? A escolha foi rápida e nesse momento com algum contorcionismo e graças a um corpo magro consegue entrar na escura caverna e tropeçando, faz seu caminho escuridão adentro. Nesse momento volta o olhar para a entrada onde cães brigam para ver quem entrará primeiro. Os latidos insistentes e furiosos ecoam pelas paredes úmidas, um deles enfim consegue entrar e avança ferozmente contra a garota. ”

Marcus acorda. Seu espirito voltou. Abre os olhos e tenta recordar o que faz ali. Uma folha pousa gentilmente sobre a poeira a sua frente e trovões gritam que estão chegando trazendo chuva. Tem medo de não conseguir se mover. A tentativa de suicídio não aconteceu como planejado. E agora ele se arrepende do ato, com receio de ter ficado paralisado. Tenta esticar um pouco as pernas e consegue, seus braços também parecem estar respondendo. Do novo ponto de vista, vê algo pendurado atrás da estante. Apoia as mãos no chão poeirento e trata de ficar de pé.

Enquanto se levanta vê o frasco vazio e agradece a sorte de estar vivo. Toda essa mudança: a morte recente do pai, uma nova vida em uma terra desolada e carente de qualquer boa perspectiva, motivaram-no a tentar partir, mas ao retornar algo havia mudado. Ainda não sabe quanto tempo ficou desacordado. Intui que deve ter passado do meio-dia, porque a fome está lhe fazendo companhia. Esfrega as mãos no corpo levantando a poeira que inunda o pequeno cômodo.

A visão volta e com ela as primeiras gotas de chuva começam a cair a centenas de metros da cabana, Marcus não entende, ouve  o som, mas não há sinais da tempestade na cabana. Aos poucos o som vai ficando cada vez mais alto assustando-o, parece que vai enlouquecer com tanto barulho. A água começa finalmente a varrer o telhado, Marcus abaixa-se com as mãos sobre os ouvidos, não parece ser apenas chuva, o ruído é diferente, muitas vezes mais alto. Aos poucos vai retirando a mão da cabeça e voltando a ficar de pé. A claridade de um relâmpago o encontra e em seguida o anunciado trovão mostra sua voz, a cabana treme tanto quanto Marcus. “Devo estar sonhando ainda, isso não pode ser real”, conclui.

Algumas gotas da chuva rompem a frágil cobertura e começam a desabar sobre o piso empoeirado e cada gota que atinge o chão pode ser ouvida, como se o mundo estivesse envolto em um silêncio absoluto e apenas as gotas caindo existissem. Quando tira sua atenção delas, volta a ouvir o som da tempestade, lavando a floresta e o aprisionando naquele lugar.

Abaixa para pegar o frasco, examina-o contra a claridade da janela e confirma que está vazio. Ri sozinho pensando na loucura que fez já que dependendo do que havia no seu interior, neste momento ele estaria morto. Deposita-o no lugar onde o encontrou. Decide fazer o mesmo com o livro, mas antes de devolvê-lo ao seu lugar para o merecido repouso eterno, tenta tirar um pouco da poeira que o impregna. A capa se abre revelando a primeira página, não mais em branco. Folheia mais algumas e até onde olha, todas agora estavam escritas numa caligrafia caprichosa, algumas gravuras e, no momento, uma esperança.

Fecha o livro e busca um lugar para sentar já que vai ter que ficar ali algum tempo aguardando a tormenta passar e aquele livro parece ter muita coisa para lhe dizer. Força o pé sobre a velha cadeira e a mesma parece resistir bem à pressão. Arrasta-a para mais perto da janela e lentamente arrisca sentar-se em algo com aparência tão frágil. Alguns rangidos reclamando do peso e nada mais. Com o livro nas mãos abre na primeira página e inicia a busca por alguma informação que revele algo sobre este lugar esquecido.

“Saudações,

Bem vindo à minha casa nobre viajante. Se neste momento você está conseguindo ler essas páginas, é alguém muito especial. Não tenho como saber como você chegou até aqui e sinto não poder dizer essas palavras olhando nos teus olhos. No meu tempo, para ver o que escrevi nestas folhas, era necessário tomar a poção dos sentidos. Deixei um pouco escondido atrás do livro, mas não consigo imaginar o que faria alguém beber algo desconhecido. Prefiro crer que você é magicamente superior aos demais, ou que no seu tempo a magia seja mais difundida.  Se você usou a poção, preciso alertá-lo que ela dura poucos dias e sendo assim, nos despediremos em breve.

Meu nome é Lizandra. Minha idade e identidade foram perdidas ao longo dos anos. Devo estar beirando a loucura e os 20. Esse livro tornou-se meu mundo, por anos de abandono e decepção, meu refugio e meu único e melhor amigo.  A história é longa, mas o tempo nunca me faltou. Na verdade sinto que sou sua prisioneira. Fui esquecida em algum lugar entre o ontem e o hoje. Nunca vislumbrei o amanhã.

Voltarei no tempo e contarei o que aconteceu até eu chegar aqui. Não busco redenção, nem reconhecimento e já me conformei com a minha sina. Quero apenas dividir com alguém algumas palavras, algumas histórias e quem sabe, de alguma maneira, preencher um vazio dentro do seu coração. Porque assim como a maioria das pessoas, só nos damos conta do que temos quando já deixamos de ter.

Cuidado viajante: se a igreja ainda persegue quem pensa de maneira diferente ou que possui dons que eles não sabem explicar, esconda esse livro e não o comente com ninguém. Aja com prudência ao lê-lo ou abandone-o em um lugar ermo. Não posso conceber que as minhas palavras arruínem a vida de mais alguém. Já basta a desgraça que ser uma suposta herege trouxe para os meus dias. Neste tempo sou caçada por ser considerada uma bruxa. 

Lizandra Khorn” 

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora