Uma escada infinita
Desce até a escuridão dos meus sentimentosVolto levantando poeira com os passos. Pó de terra que voa na direção do armazém, refletindo de maneira inequívoca o que eu também gostaria de fazer. Venço a distancia impossível entre o brilho de Dane e a escuridão da minha casa e retomo a missão inacabada de explorar um porão até poucas horas atrás desconhecido.
O ar quente dentro da casa fechada a manhã inteira me remete às caldeiras do curtume e trato de abrir as janelas para dissipar um pouco deste passado. A luz da janela clareia um pouco mais da escada e mostra que o lugar é finito revelando um chão de terra batida e poeira.
Infinitas paredes de teias esquadrinham o lugar criando um medo adicional. Não que aranhas me causem temor, mas a que criei mentalmente teria dificuldade em sair pela escotilha do porão. Considerando os últimos fatos, um aracnídeo gigante não causaria mais tanto espanto.
De posse de uma vela acessa e da minha tradicional curiosidade desço com cuidado os degraus rumo fundo dos meus pensamentos. Aos poucos sou engolido pelo alçapão deixando para trás apenas a luz e a fumaça da vela. Correntes de seda lacram o lugar, dissolvo-as aproximando a chama trêmula que abre caminho e aos poucos dá vida ao lugar.
Surgem no meio das sombras uma cama, uma pequena mesa e paredes esculpidas na terra se mantém em pé graças a alguns troncos de madeira com aspecto petrificado. As moradoras de oito patas procuram abrigo em suas tocas escavadas nas paredes levantando pequenas nuvens de esquecimento durante a fuga.
Ilumino de perto a mesa posicionada aos pés do pequeno leito indicando que ela também era usada como cadeira. Rolo sobre a mesa uma pequena pedra que se revela um pedaço de carvão. Seu movimento emoldurou uma folha de papel na poeira do móvel. Removo da moldura a folha e à medida que a cortina de poeira vai descendo, formando uma cascata de pó do passado, o desenho de um sol iluminando um adulto e uma criança surgem nas linhas negras e grossas do carvão.
A imagem do sol me faz viajar e em um piscar de olhos sou remetido à lembrança de onde o vi tão belo pela ultima vez...
"Acordo renovado sob os lençóis do meu quarto, na fazenda do tio Aden Ravensdale. A janela acabara de ser aberta e revela um belo sol de inicio da manhã. Acredito ter visto o vulto da tia Earlene enquanto me acostumava com a claridade:
- Bom dia Marcus, o café está servido. Aden precisará se ausentar por alguns dias e gostaria de falar com você antes. Desculpe ter lhe acordado. - Fala a sombra que segue para a porta.
- Já passou da hora de levantar tia e se estivesse em casa Bettina já teria me atirado um jarro de água fria. - Respondo tentando vê-la contra a luz protegendo os olhos com uma das mãos.
Encontro a família reunida à mesa. Constrangido pelo adiantado da hora sento, no mesmo lugar ocupado no jantar, onde o meu silêncio ainda aguarda por mim.
- Bom dia. - Ecoam em diversos timbres de voz.
- Bom dia a todos. - Retribuo enquanto arrasto a cadeira.
Homem direto e avesso a perder tempo com rodeios, Aden introduz o assunto:
- Marcus, os negócios não param. Você é meu convidado e poderá ficar aqui o tempo que achar necessário, mas preciso me ausentar por uns dias.
- Não quero causar nenhum transtorno tio, irei embora em breve, essa preocupação você não precisa ter. Meu pai precisa de mim e não fico confortável em ficar parado sabendo disso. - Respondo.
- Apenas o seu pai precisa de você? Ou teria alguma pretendente aos prantos agora? - Questiona-me como se já soubesse a resposta.
- Assim espero. E que a pretendente seja bonita e apresente-se assim que eu retornar. - Brinco.
- Essa sua cara de tonto não me engana. Você tem o sangue dos Ravensdale nas veias, touros na sua origem, indomáveis e insaciáveis. - Declama orgulhoso Aden.
Um olhar de reprovação é lançado pela tia, que move negativamente a cabeça removendo um pouco da animação do tio que ri para um pedaço de pão como ele tivesse formas femininas. Ted sorri:
- Quando estiver recuperado Marcus, faremos uma visita a umas conhecidas no porto. Não estarão lhe esperando aos prantos, mas a beleza eu garanto.
Earlene continua reprovando o rumo da conversa, mas quase não consegue esconder o sorriso, concluindo que eles não têm mais conserto. Aden parte para a viagem, Ted segue para um rumo desconhecido. A tia me esperou terminar com um sorriso apressado que reduziu meu tempo à mesa.
- A casa é sua, fique à vontade e se desejares algo basta falar comigo ou com a criada. - Declama a tia enquanto a bela serviçal inicia a retirada da mesa e some logo em seguida pelo labirinto de portas e corredores.
Novamente apenas eu e a criada lutando em uma guerra, munidos apenas com o nosso silêncio e olhares disfarçados:
- Encantado, Marcus Ravensdale. Lancei sem rumo e sem pretensão a primeira flecha.
- Eshe. - Olhando com um misto de medo e reprovação. - Afolayan. Concluiu apressando sua atividade para sumir dali.
- Não precisa fugir, não sou o Ted. Então até certo ponto você esta um pouco mais segura. - Brinco lançando mais uma flecha tentando matar de vez seu medo.
Ela apenas sorri deixando cair uma das peças da sua armadura e trabalhando um pouco mais devagar. Despeço-me e vago para o único lugar que conheço, meu quarto.
- A sala do senhor Aden é um lugar bem agradável para se ficar pela manhã. - Informa Eshe indicando com o olhar a direção.
Aponto para a porta buscando a confirmação e a criada acena positivamente com a cabeça. Uma grande sala ensolarada e refrescada pela brisa do mar se revela. Uma bela mesa, algumas estantes com livros, uma versão respirável da sala do curtume, aerada e iluminada. Apoiada sobre uma das estantes, uma pequena escada dá acesso aos livros mais altos.
Caminho próximo aos livros fingindo ler com os dedos os títulos nas lombadas. Contorno a escada e lanço um olhar para os livros mais altos, um destaca-se. Não pelo titulo invisível para mim a essa distância, mas pelo couro usado na capa. Vicio da profissão.
Ajeito a escada garantindo sua estabilidade, subo alguns degraus e descolo o pesado volume do meio dos demais. A capa reluzia um couro polido e possuía nas extremidades pequenas placas de metal que lhe protegiam dois cantos.
Parcialmente vazadas no couro, duas figuras se destacavam: um grande sol e uma torre, escrito por Anthony Blackburn sob o titulo de A Torre dos Desejos.”
Quando olho o sol na capa acordo com uma folha desenhada com carvão no porão da minha casa.
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O Livro (Lizandra's Book)
General FictionEm 1737, junto com o suicídio de meu pai, minhas últimas esperanças também foram enforcadas... Da antiga vida ao seu lado, do próspero negócio da família, nada restou. Sobrou-me o isolamento em uma vila esquecida, lar dos meus antepassados e provav...