Capítulo 4

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E sobre toda a minha dor
Erguerei o meu castelo 

O carinho pelo pai permeia as palavras de Lizandra. Fico imaginando ela menina, com o cabelo em chamas ancorando os olhos sobre o aventureiro homem do mar. O vermelho que adorna o rosto da doce garota me remete à grande mesa de carvalho encravada no escritório do curtume, onde eu e o Sr. Alec Ravensdale passávamos a maior parte dos nossos dias. A lida era sofrida, mas trabalhar ao lado do meu pai está talhado na minha memória como os melhores momentos que já tive nessa atualmente tão insignificante vida.

Os Ravensdale ocupavam as planícies de Hereford, reconhecidos em vários outros condados pela habilidade na lida com o gado. A exceção à regra coube ao meu pai, que aprendeu a trabalhar com o couro desde cedo e decidiu transformar a habilidade em oficio. De certa forma, os laços familiares e a tradição foram mantidos e os animais ainda norteavam todas as conversas. Despediram-se muitos anos até que Alec pudesse se orgulhar do seu trabalho, mas o tempo soube recompensar sua dedicação. O tempo, seu trabalho e a sua dor.

Quando Alec decidiu seguir seu rumo, abraçando sua vocação, levou na mala muitos sonhos, alguma esperança e uma boa dose de amor. Junto a tudo isso seguia seus passos Katherine Dundee, filha mais nova de Herald Dundee, um dos mais antigos funcionários da família, e, futuramente, a melhor mãe com a qual o mundo dos sonhos pode me presentear.

Foi ao lado desta incansável e inesquecível mulher que ele iniciou uma nova família e construiu seus mais alegres momentos, culminando com o meu nascimento. E no período em que o árduo trabalho começou a ser reconhecido e o primogênito completava 8 anos de vida ela adoeceu. Um véu negro de dor passou a nos acompanhar. Lembro da luta angustiante que foram aqueles dias, buscando uma explicação, algo que justificasse o seu lento definhar, suas forças sendo drenadas. Recordo agora do seu sorriso sofrido com uma precisão presencial.

Foram poucas semanas até que a piedosa morte viesse nos visitar e saísse com minha mãe nos braços. Levou com ela a alegria de um filho e o amor de um esposo. Um rastro de saudade ficou estendido por meses, ligando o cemitério e a nossa casa. Alec, inconformado, a visitava diariamente e muitas luas depois semanalmente, até decidir que precisava seguir e entrou com o corpo no trabalho. Não posso dizer com a alma, porque essa ele havia deixado junto a Katherine e não fez questão alguma de resgatar.

Meus sentidos realmente foram alterados pela poção de Lizandra. Sinto nesse momento a mesma tristeza que me cobria no dia do enterro de minha mãe. Uma dor que parece viva dentro de mim, dona de garras afiadas que abrem espaço nas minhas entranhas, até chegar ao centro do meu peito e me rasgar de dentro para fora. Não tenho como conter as lágrimas que, acompanhando a chuva no telhado, escorrem pelo meu rosto encontrando seu berço no livro que tenho em mãos.

E levando o pesado fardo da existência sem Katherine nossa vida seguiu. Muito trabalho, incontáveis acidentes provenientes do duro oficio, que variava desde pequenas intoxicações por gases do curtume, até queimaduras médias ou grandes mutilações por descuidos durante o corte das peças de couro.  Sou invadido pelo cheiro do sangue que Audrey Evans tratava de expelir do corpo tão logo teve seu braço arrancado pela prensa usada na secagem do couro. A lembrança daquele mar vermelho agora turva minha visão.

Pouco mais de uma década depois, era impossível separar Alec do seu trabalho. O tempo o havia curtido, assim como as peças de couro que deixam seus últimos traços de vida nos tanques, meu pai também deixou. Os negócios iam muito bem e alguns amigos na nobreza impulsionavam as vendas. Dentro deste seleto grupo, o Duque Edwin Lerwick de Devon destacou-se. O estreitamento desta relação acabou transformando-o em sócio e apesar de um passado obscuro, sua influencia entre os nobres mostrou-se promissora.

O ilustre sócio não era o tipo de homem que enfrentava os desafios da lida diária. Raramente aparecia, é bem verdade, e nas suas visitas mensais éramos brindados com alguns sorrisos, muitos novos negócios e em raras ocasiões algum pedido especial. Assim como aquele feito em uma iluminada manhã da primavera de 1734, há pouco mais de três anos. Além da tradicional bagagem, Edwin trouxe no seu rastro Anabelle Faucheux, enrolada em alguns trapos e sem nenhuma esperança.

Era a última sobrevivente da sua família, segundo o Duque, que intercedia a seu favor a pedido de um amigo de longa data. Os Faucheux tiveram sua casa, situada na região da costa de Somerset, reduzida a cinzas. O fogo que a consumiu, tratou de transformar em fumaça os sonhos de prosperidade de uma pobre família francesa na Inglaterra. Suspeitavam que o incêndio houvesse sido provocado por algum desafeto da família, mas nesse momento o que Anabelle buscava era um lugar para recomeçar.

Não estranhamos a presteza com a qual o pedido foi atendido pelo meu pai. Apesar de toda dureza que a vida havia imposto para sua existência,  era e continuava sendo um homem de bom coração,  perdido no tempo em que sua bondade andava ao seu lado, ao alcance das mãos e atendia pelo nome Katherine.

A alta rotatividade dos empregados sempre deixava outra posição em aberto, nesta data não foi diferente. Anabelle encontrou algo para manter a mente ocupada durante o dia, bem como um canto para descansar seu corpo durante as solitárias noites. Havia um alojamento nos fundos que era compartilhado por outras moças do curtume.

O duque mostrou-se muito agradecido e, dando por concluída a missão solidária, partiu para suas andanças cercadas por uma névoa de mistério impenetrável. Coube a mim acompanhar a pobre moça durante seus primeiros dias. Não deveria ter privilégios, mas para agradar o sócio ganharia uma atenção adicional.

Moça de poucas palavras e dona de um olhar felino que enchia a minha cabeça com muitas dúvidas e algumas certezas, adaptou-se bem ao trabalho pesado. Acredito que, se sua história não fosse tão trágica, a essa altura sua cama estaria vaga. O curtume não é para qualquer um, ainda mais para uma bela mulher como Anabelle.

Acostumado a lidar com senhoras com mais pêlo facial que eu, a presença daquela estranha me perturbava os sentidos. A sorte, ou o azar, era que eu nunca havia me envolvido com alguma mulher no curtume e que a francesa era do tipo recatada. Fechada no seu mundo de trevas e fumaça.

Minha proximidade previamente solicitada por Alec não parecia perturbá-la. Infelizmente também não parecia agradar. Trocávamos meia dúzia de palavras em dias bons e apenas acenos de cabeça de significado confuso em dias ruins.

Os meses seguiam tímidos, trazendo consigo as estações, algumas visitas do duque, raros dias bons com Anabelle e uma infinidade de ruins. Minha presença dedicada já não se fazia mais necessária e meu contato com ela foi diminuindo até chegar ao mesmo patamar que era dispensado aos demais funcionários.

Sofri no inicio. Gostava de ficar perto dela e depois do afastamento passei a acreditar, em meus sonhos, que ela sofria também. Sentia seu olhar perfurando as janelas a minha procura. Era uma sombra que me perseguia pelos corredores escuros e vaporosos do curtume. Estava no ar, na fumaça que rompia seu caminho pelas fendas da caldeira, estava dentro de mim.

Sabia pouquíssima coisa a seu respeito. Nossa vida monossilábica e com grandes sessões de contorcionismos da face e pescoço, só a tornaram ainda mais misteriosa para mim. Além do nome e da tragédia que cruzou a sua história, só me foi revelada a sua idade que beirava a terceira dezena, e que tinha o dom de me perturbar.

Sem eu perceber, meus dias foram escurecendo, e sendo sufocados por uma ausência tão presente quanto cruel. Perdido nos pensamentos mais profanos fui diversas vezes retirado do transe por intervenções não tão sutis do meu pai que cansado de falar com um morto, tratava de me devolver à vida com um safanão.

Até que numa dessas manhãs, na busca por respostas que não existiam dentro da minha mente nublada eu me perdi e meu corpo adoeceu.

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora