Capítulo 33

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A vida contorna qualquer obstáculo
E onde há amor ela sempre pode recomeçar

Mat volta do armazém alegre e cambaleante, tentando traçar seu caminho tortuoso até sua cama, esbarrando em tudo que encontra no percurso e usando de apoio o que suas mãos conseguem alcançar. Dane vem ver o que está acontecendo e ao constatar o motivo da barulheira guia o pai até o leito, deitando-o ao lado da sua mãe enquanto cuidadosamente sai do quarto após acariciar cada um mais uma vez:

- Ainda não acredito no que estou vendo. – Diz a sussurrante Dane enquanto admira o casal junto novamente.

- Pode acreditar essa é a sua realidade. O pesadelo enfim acabou. – Completo, fechando o livro e seguindo para minha cama.

Ela ainda estava parada na porta olhando os pais quando minha visão a perdeu, mas tão logo me posicionei para continuar a leitura uma nova Dane sentou-se ao meu lado. Ela brilhava! Acredito que poderia ler sem a ajuda das velas tendo apenas a moça ao meu lado. Seus olhos sorriam e sua respiração exalava alegria. Lembrei-me de Katherine e entendo o seu sentimento. Imagino que se a vida me desse a chance de encontrar minha mãe novamente, esta seria minha reação. Coloco-a par da história. E com ela agarrada ao meu braço e a cabeça encostada no meu ombro, continuo a ler.

"Hampshire, 1672

Perdi a noção do tempo, meus dias viraram meses, meus meses anos. Minha única ponte com o mundo dos vivos é Benittes. E ele que mostra a cada visita que eu ainda estou aqui e na sua ausência passo o tempo perdida em longas conversas com Alberta Tolvaj, invocando-a no seu tumulo, e me aproximando cada vez mais da loucura e da morte. A esperança de rever meus pais ainda existe, mas no momento é tão pequena quanto a minha vontade de continuar a viver.

Benittes sempre tenta me alegrar, dizendo dia após dia que meus pais voltarão e que tudo vai ser como era antes. Mesmo que as palavras não soem verdadeiras nem para ele, sua persistência me comove e de certa forma, me faz acordar mais um dia viva por aqui. A cabana na floresta ficou pronta, mudei-me para ela e recebo a visita do amigo do meu pai com frequência. Se não fosse pela esperança de ver meus pais batendo em minha porta já teríamos sumido daqui. Convites da parte dele não faltaram.

Foi inevitável nos relacionarmos. Eu não tinha mais nada, mais ninguém e minha vida escorria por entre meus dedos como a areia de uma ampulheta. Seu amor me renovou, virando o tempo a nosso favor. Afastei-me do mundo dos mortos e das conversas com a senhora Tolvaj. Renasci em vida engravidando de Bennites Araya. Voltei a querer viver, independente das agruras do passado, me descobri mulher e em uma bela manhã me tornei mãe. Recordo até hoje da emoção de ter Paulina em meus braços pela primeira vez."

Dane me olha e nossos pensamentos se encontram visualizando a mesma imagem naquele momento: sua avó Paulina Araya. Como a filha de Lizandra. Seria uma simples coincidência, se a revelação não fosse confirmada pelo nome do seu bisavô, Benittes e suas inúmeras histórias sobre bruxas, narradas por Paulina ao longo dos anos. 

Histórias verdadeiras, concluímos. Resultado de anos vivendo escondido temendo a fogueira, temendo a igreja.

Comento com Dane sobre o ocorrido com o desenho esta tarde, a identificação do símbolo feita por Paulina e as peças começam a se encaixar, formando um mosaico ainda difícil de compreender, mas se existe uma resposta, ela está aqui no livro.

"Foram os anos mais felizes da minha vida, os dois que passei ao lado de minha filha. Já planejávamos abandonar a floresta e recomeçar a vida em outro lugar, mas sem que soubéssemos, boatos da presença de uma bruxa na floresta ganhavam força na igreja e algumas buscas estavam sendo realizadas. Eu nunca me afastava muito de casa, mas naquele dia eu caminhei com Paulina até próximo a caverna de Alberta. E fomos vistas.

Ouvi os latidos e fugi carregando minha filha até encontrar a caverna. Nos encolhemos em um canto e eu a protegia com meu próprio corpo, mas o som insistente dos cães parecia cada vez mais próximo, rondando a caverna. Seria uma questão de tempo para eles nos encontrarem aqui e não teríamos como escapar. Acalmei-a e pedi para que não chorasse que eu já voltaria. Corri para fora e tratei de chamar a atenção dos cães para longe dali.

Corri o mais rápido que pude pela floresta machucando-me pelo caminho, mas mantendo-me firme na fuga alheia a qualquer dor, pensando apenas na segurança da minha filha. Parei em frente a um desfiladeiro e abaixo dele um rio apressado lavava as pedras que não me convidavam a saltar. A entrada parcialmente desmoronada de uma mina, esquecida no tempo surgiu como minha única saída, quando os passos dos cães já podiam ser ouvidos rasgando a floresta.

Entrei e fui seguida pelos animais, mas acredito que Alberta veio me ajudar no momento que um deles abocanhou meu pé, já dentro da caverna escura. Meu grito de dor foi acompanhado pelo ganido dos animais ao serem atingidos por uma pesada rocha que se descolou do teto, matando-os instantaneamente. Quando a pressão dos dentes foi interrompida e a boca do cão abriu lentamente me libertando, desmaiei."

***

Enquanto Lizandra estava desacordada, o caçador chegou ao desfiladeiro e concluiu que seus cães e a moça haviam caído. A caverna, agora com a entrada bloqueada, não parecia ser uma rota de fuga viável. Ele sorria mesmo sem a confirmação do sucesso da caçada. Iria relatar que a bruxa estava morta e isso bastava. Benittes desce do cavalo ainda em movimento e parte em direção ao homem:

- A bruxa morreu você chegou tarde para mata-la. – Diz sorrindo para o homem que ele julgava ser outro caçador. – Vou voltar para achar a criança, ela não estava sozinha a maldita.

Essa foi a ultima frase proferida pelo homem antes do grito enquanto despencava paredão abaixo, impulsionado por um soco que ele morreu sem saber de onde veio. De joelhos, Benittes viu o corpo do homem ser rapidamente levado pelo rio, após o impacto contra as pedras. Despediu-se de Lizandra em pensamento e partiu para procurar a filha, encontrou-a vagando próxima a caverna. Chorou abraçado com a menina que buscava com o olhar a presença da mãe, em vão. 

Deste dia em diante refugiaram-se na Vila da Passagem, em uma casa cedida pelos Dundee que estavam de partida. O porão feito por Benittes que temia que viessem à procura da filha da bruxa, se mostrou salvador em diversas situações, até a inquisição perder força e a pequena Paulina poder enfim levar uma vida normal.

Lizandra nunca mais encontrou a filha. Descobriu que estava viva por intermédio de Alberta, mas morreu tentando vê-la mais uma vez. E por esta morte a senhora da floresta nunca se perdoou.

***

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora