Capítulo 17

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Dias de uma dor infinita
Noites de luta no vale das lágrimas

Olhei perdido para o distante armazém tentando adivinhar sua silhueta na escuridão. Esforço em vão.  Pensei em ir até lá tentar justificar, mas se nem eu me perdoo pelo que fiz, prefiro não pensar na reação da senhorita Dane Kinsey. As revelações da fazenda não têm relação com a geleira que me tornei. Essa dor começou após a noite que retornei...

“Cheguei tarde da noite, trazendo na bagagem segredos, rostos e corpos encontrados no porto, e uma chuva que me encharcou até a alma. Não demorei a dormir, o cansaço da viagem pesava mais do que qualquer outro sentimento. Pensei em falar com meu pai, mas ruídos que nasciam no seu quarto revelaram que ele não estava só.

Acordei no meio da manhã depois de horas de sono que passaram como segundos. Bettina Lohrenz estava muito contente em me ver bem corado e disposto. Uma nova pessoa, se comparado com o moribundo que ela viu sair daqui.  Mas atrás daquela alegria havia uma ponta de pesar, algo a incomodava, e que ficou mais evidente quando ela transmitiu o recado:

- Marcus, o senhor Alec pediu para que você fosse para o curtume tão logo acorde, ele precisa lhe por a par de algumas novidades. Informou Bettina quase em tom fúnebre.

Estranhei a mensagem e a associei-a com os sons ouvidos na noite passada, meu pai enfim havia encontrado alguém para dividir sua vida. A clausura foi rompida e o luto de mais de uma década foi dado como encerrado. Uma notícia que merecia outro tom, mas em breve a preocupação da empregada seria justificada.

Tão logo entrei em sua sala fui recepcionado com um abraço sorridente, que vinha de um Alec tão diferente daquele que eu havia acompanhado por anos. Estava radiante. E parecia que minha viagem havia feito muito bem a ele, até mais do que a mim. 

A sombra de uma mulher recortou a luz da janela. De costas não havia como reconhecê-la, mas quando me desvencilhei do abraço paterno ela veio na minha direção cumprimentar-me, Anabelle Faucheux.

Irreconhecível (exceto por aquele olhar que me dilacerava por dentro), bem arrumada, enterrou com um só golpe a operária silenciosa do curtume. Fiquei sem palavras, não sabia se retribuía a saudação ou saia da sala em busca do ar que ela havia me roubado. Sufocando retribuí o cumprimento. Sentei na cadeira oferecida por Alec, desabei sobre ela contemplando a troca de olhares e sorrisos dos dois:

- Anabelle foi de grande ajuda durante sua ausência filho. - Disse meu novo sorridente pai.

- Imagino o quanto pai. - Respondi, destilando um pouco da minha inveja.

- Acabamos nos aproximando e Anabelle conseguiu o que parecia impossível, voltou a colocar no meu peito um coração. - Continua, mantendo seus olhos sobre a amada.

A notícia seria maravilhosa, meu pai plenamente vivo novamente e desfrutando a vida ao lado de uma mulher que ele parecia estar amando se nossa paixão não fosse pela mesma mulher. Tentei conter a raiva mesquinha que nascia dentro de mim e a essa altura lutava contra a alegria de ver meu pai feliz.

- Minhas bênçãos ao casal e se me permite pai, gostaria de dar uma volta pelo curtume e ver como andam as coisas. - Disse já me levantando.

Alec concordou com a cabeça mantendo os olhos cravados em Anabelle. Saí o mais rápido que minhas pernas permitiam. O som da porta abrindo foi seguido por outro que parecia de um beijo. Virei-me instintivamente e ela me apunhalou mais uma vez com aquele olhar enquanto beijava meu pai.”

Naquele dia algo se rompeu dentro de mim e nos dois anos seguintes eu sofri com a tortura de ver tudo o que eu mais queria nos braços do meu pai. Sentia-me sujo, com pensamentos egoístas que viviam excluindo Alec do cenário, desejando sua mulher que muitas vezes encontrei nua em inesperados encontros pela casa.

Nesses anos de dor e ausentes de qualquer alegria, perdi em algum lugar minha vontade de viver. Pensei em voltar para a fazenda do tio Aden dezenas de vezes e só não o fiz devido às mudanças lá ocorridas. Eshe havia engravidado e desapareceu no mundo pouco antes de dar a luz. Temia que lhe retirassem o filho. 

Ted trocou a perdição do porto por uma vida de buscas atrás da irmã e do filho, acompanhado por Aden e deixando Earlene em uma casa onde a tristeza e infinitas orações eram sua companhia. Assim relatou meu pai após uma visita que nunca mais se repetiu.

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