Capítulo 35

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Luas que brilham juntas
Promessas cumpridas que adornam o céu

Compartilho contra vontade minha visão com Dane. Não quero que ela sofra assim como sofreu ao ouvir da minha boca esse relato. Seco suas lágrimas ao contar quando o fogo foi ateado covardemente em uma já agonizante Lizandra. Terminamos a narrativa abraçados, eu triste pelo desfecho trágico desta jornada bem como pelo fim da própria história,  Dane por imaginar a dor de ser queimada viva.

Enquanto estamos nos braços um do outro, a senhorita Kinsey vê o frasco que me foi presenteado pela sua mãe,  algo que havia de certa forma caído no esquecimento depois da avalanche de acontecimentos. 

- Mais poção dos sentidos? - Pergunta analisando o pequeno vidro contra a luz.

- Espero que sua mãe saiba a resposta. - Digo recebendo o recipiente das mãos de Dane. - Considerando que ela sabia para quem entregar, pode nos revelar também o efeito.

Já é tarde da noite quando nos despedimos. No quarto ao lado o casal dormia junto novamente depois de um longo afastamento. Dane os contempla mais algum tempo da porta, segurando a trêmula chama de uma vela que parece dançar de felicidade. Aguardo sua sombra no assoalho partir para então tentar encontrar o sono que eu perdi em algum lugar.

Demoro, mas depois de muito procurar o mundo dos sonhos voltou a se revelar. Corri como Lizandra na floresta, vi inquisidores sendo arrastado por dezenas de almas para serem punidos e fogueiras queimando famílias inteiras, transformando em fumaça negra a vida dos supostos ímpios. Crianças que choravam com as mãos erguidas na direção das suas mães, que gritavam no momento derradeiro envoltas pelas chamas. Anabelle segurando a ponta da corda que sustentava no ar o corpo sem vida do meu pai. E quando fitei seu rosto pálido, seus olhos se abriram repletos de ódio e eu acordo.

Os demais já estão todos acordados e ouvem atentos os relatos de uma Lally aparentemente lúcida, tentando de alguma maneira explicar seu paradeiro nos anos anteriores. A conversa é interrompida quando me avistam:

- O que ele faz aqui? - Pergunta Lally para Mat.

- É nosso hospede por alguns dias o nome de é...

- Marcus. - Interrompe me cravando um olhar sério, beirando a raiva.

- Isso, Marcus,  descendente dos Dundee. Estava morando na casa deles na entrada da vila, mas teve alguns problemas recentemente. - Completa Mat.

- Encantado senhora. - Digo reverenciando-a. - Minha estadia será breve posso lhe assegurar. Posso  perguntar como sabia o meu nome tão logo me viu?

- Seu rosto e seu nome ecoavam na minha cabeça quando enfim consegui sair daquela caverna guiando novamente as minhas pernas. Uma maldição insistente que mandava eu lhe entregar o frasco. – Relata a mãe de Dane com o olhar perdido. - Até ontem vivi prisioneira dentro do meu próprio corpo. Via o mundo através dos meus olhos, mas não era eu que comandava meus movimentos. Caminhei enjaulada em mim mesma por anos, vagando pela floresta, vendo pessoas caminhando à distância. 

Lutei muito no início, mas o cansaço me venceu. Aceitei minha prisão e deixei o tempo passar. - Revela deixando uma lágrima cair.

- Sabe o conteúdo do frasco? - Questiona Dane enquanto acaricia o rosto da mãe roubando-lhe a lágrima.

- Não beba! - Grita de maneira descompensada Lally, assustando a todos os presentes e nos dando a impressão que não era mais ela que estava ali. - Remorso, muito remorso, poção do remorso, não beba, não beba! - Diz exaltada parecendo estar fora de si.

Dane e Mat a acalmam e aos poucos parece retornar para nós.  Sem mais perguntas, pedem. Concordo e ficamos os quatro um tempo em silêncio, enquanto Lally se acalmava e voltava a respirar normalmente. Passado o susto, volta a relatar o que se lembra. Fragmentos de uma vida presa dentro de si até despertar livre no dia de ontem.

O momento é conturbado. Apesar da parcial sanidade de Lally fica a dúvida se devemos ou não levá-la até sua mãe Paulina. Não temos como prever suas reações e, ponderando sobre o que fazer, a manhã termina.

A tarde se inicia e com esta, o caminhar da filha, há tanto tempo perdida, para ver a mãe. O grupo segue devagar até a casa de Paulina, um cortejo coberto pela dúvida que deixa estampados na poeira da estrada, pegadas de insegurança. E o som dos passos é tudo o que se ouve na distância percorrida entre as residências.

Encontramos Paulina sentada em sua cama, Annie se afastou e deu espaço para Lally e Dane entrarem. A velha senhora olha na direção das duas e pressentindo a aproximação pergunta:

- Lally? É você? - Lagrimas riscam o seu rosto repleto de esperança.

- Sim mãe, sou eu. - Responde chorando ajoelhada em frente à mãe e beijando suas mãos repetidas vezes.

Paulina desenha o rosto da filha com as mãos, exibindo um sorriso que teima em ser interrompido diversas vezes por um chôro contido ao longo de tantos anos. Abraçam-se e desaguam juntas um rio de felicidade. Dane completa o abraço aumentando a força da correnteza.

O dor de anos de angústia se dissipa. O peso de perder uma filha abandona os ombros da anciã.  E ao ver as três reunidas a imagem da triluna me invade a mente. 

A floresta confirma o meu pensamento inundando a casa com um vento insistente. Nasce o espanto no rosto dos presentes, emoldurados por cabelos esvoaçantes e um sorriso derradeiro no rosto de Paulina.

Pronuncio em voz baixa o ritual de invocação de Lizandra e a lua nova completa a reunião.  Assustados, vêem a moça em forma translucida de pé sobre a cama. Paulina se deita lentamente, como fazem as crianças todas as noites quando vão dormir, sorrindo para a mulher de névoa. Sorrindo para a sua mãe.

Quando sua cabeça encontra o conforto do travesseiro, seus olhos se fecham pela última vez.  Lizandra estende sua mão em direção ao corpo de Paulina e deste surge a mão de uma criança. As mãos se tocam quando já é possível ver sentada sobre a cama uma menina com poucos anos de idade. Lizandra ajuda sua filha a se por de pé e diante dos olhos incrédulos dos expectadores agradece:

- Obrigada Marcus. Posso finalmente descansar em paz. - Diz Lizandra olhando para a filha com tanta ternura que transforma a tristeza da morte de Paulina em alegria. A alegria do seu renascimento em outra vida, agora com a mãe.

As figuras vaporosas caminham lentamente em direção à floresta, dissipando-se a poucos metros da casa. O vento cessa. A senhora Tolvaj cumpriu sua promessa mais uma vez.

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora