Capitulo 1

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Aquele cuja esperança o tempo consumiu, 
Só o tempo poderá devolver

Naquele dia algo me empurrava para fora de casa, recém-chegado, ainda saboreando a clausura da mudança repentina para uma cidade do interior. Uma paisagem insólita, perdida no tempo, poucas casas, raras pessoas. Fui amaldiçoado pela ruina financeira da minha família, o que restou foi essa casa que um dia já foi o lar dos meus bisavós.

O dia não estava nada convidativo, um cinza pesado carregava as nuvens com cara de poucos amigos que rondavam os céus da Vila da Passagem, mas eu tinha que andar, era como se meus membros inferiores tivessem vontade própria. E eu os obedeci.

Caminhei sem rumo por estradas de terra batida, cobertas de folhas secas e sem esperança. Até o momento que já cansado, decidi voltar. Um último olhar ao meu redor revelou algo estranho no cenário. Uma pequena cabana com ares de abandono secular, encravada entre árvores e amarrada com uma infinidade de cipós que a blindavam contra curiosos.

Mas não sou um curioso comum, pensei. Sou um frustrado andarilho que parou aqui guiado por suas pernas e carregando uma pesada cruz de insatisfação. Não sou qualquer um. Nesse momento sou bem menos que um.

A ausência de algo mais interessante para fazer levou-me até o casebre que parecia impermeável após anos de esquecimento. Usando da loucura que nos move nesses momentos tentei buscar uma porta no meio da teia verde que aprisionava a modesta construção.

Após rodear o imóvel constatei que havia apenas duas possíveis entradas. A porta tão lacrada pelo tempo dava a impressão de que era a estrutura mais sólida da casa, era mais fácil atravessar uma parede que abri-la. E a janela parcialmente quebrada do lado, arrombada por um galho de árvore que decidiu ali um dia entrar.

Com algum contorcionismo alcancei a janela, empurrei-a como se tivesse deslocando uma pesada rocha, mas ela cedeu tão logo a toquei. Uma explosão de poeira surgiu quando ela atingiu o chão no interior da casa. Esperei a nuvem baixar e me aventurei a espiar dentro do lugar fracamente iluminado.

Era um único cômodo, como eu já esperava. Um objeto que um dia já foi uma mesa no centro, sustentada acima do chão por apenas um dos pés. Os demais já haviam desistido. A cadeira ainda conservava a forma original, mas inspirava pouca confiança para ser usada. Apoiado na parece oposta, algo que parecia um sofá de poeira provavelmente fazia o papel de cama durante a noite.

Um pequeno fogão à lenha está posicionado logo ao lado da janela e há uma panela com tampa sobre ele, mas minha curiosidade não é tão grande para ousar destapar. Vizinha ao sofá descansa uma estante estreita, suportando bravamente na posição alguns potes de conteúdo indecifrável e na ultima das três divisórias um livro. Um grosso volume de dimensões bíblicas.

Se havia algo que poderia mover-me casa adentro era esse livro e assim, saltei para o interior apoiando-me com cuidado sobre a abertura da janela. Tive medo que meu peso fizesse a casa desmontar, mas isso não aconteceu. Meus pés afundavam naquele centímetro de poeira que cobria tudo, parecia caminhar sobre nuvens.

Alguns passos depois, já estava em frente a estante. Removi dela o pesado livro e o abri. Várias páginas viradas depois e a decepção me invadiu: estava em branco, ou melhor, em amarelo. As páginas amareladas não continham uma letra sequer. Teria a tinta evaporado depois de anos de esquecimento? Esta é uma realidade que me escapa.

Quando decidi guardar a obra em branco no seu lugar de repouso, notei que a sua ausência havia exposto algo. Um pequeno frasco, selado com uma rolha carcomida pelo tempo e que não possuía rótulo nem outra identificação. Guardava por anos seu conteúdo. Um liquido que me fez viajar por uma lista de possibilidade infinitas.

Com uma coragem que não era minha, tomei o vidro com a outra mão, enquanto ainda segurava o livro. Com o polegar fiz a rolha voar na direção da estante e se esconder atrás de um dos potes que ela guardava. O som que parecia de um forte suspiro ecoou no ambiente. “Libertei algo”, pensei. Fiquei paralisado por alguns segundos, busquei ao redor a resposta, nada encontrei.

Mesmo tomado por uma vontade insana de fugir dali, decidi cheirar o conteúdo o frasco. Lentamente o aproximei, e usando o menor movimento de inspiração da minha história tentei sentir seu cheiro. Era algo de aroma agradável e doce, salivei.

- Não, você não irá tomar isso, iniciei mentalmente uma discussão.

- Mas pense um pouco, argumentava meu lado mais insano, o que o moveu até aqui se não foi para passar por isso?

Não tinha resposta para essa pergunta, mas certamente não seria beber o conteúdo de um vidro misterioso, encontrado por acaso atrás de um livro em branco, em uma casa que eu sequer sabia que existia, situada em uma região que beira uma maldição.

Ficamos os três ali alguns minutos, eu, o silencio e o vidro. Ausente de toda razão que guiou a minha fracassada história até aqui, entornei seu conteúdo na minha boca de uma só vez. Um ácido riscou minha garganta pelo lado de dentro, e quando esse atingiu meu estômago meus braços me faltaram. Deixei o livro e o vidro cair, apoiei meus braços flácidos sobre os joelhos e sentia que ia desmoronar. A poeira do livro ao atingir o chão me cegou, tinha dificuldade de respirar, não conseguia sair do lugar, e foi lutando para mover as minhas pernas que desmaiei ...

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora