Capítulo 32

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O vento abrandou meus medos
A floresta decidiu me acolher

Fico algum tempo ali olhando para Paulina enquanto seguro o seu desenho, perdido em infinitas possibilidades que a tenham levado a ficar algum tempo no porão da minha casa. Talvez nem tenha sido tanto tempo, mas a visão de um sol iluminando ela e o pai mostra o que queria naquele momento. O desejo simples e direto das crianças, a mais pura verdade que o avançar da idade começa a nublar. Penso em continuar lendo, mas sou interrompido com o retorno de Annie:

- Que bom, ela dormiu. – Diz em um tom baixo ao constatar que Paulina agora caminha pelo mundo dos sonhos.

- Foi agora a pouco Annie. E então o que decidiram? – Indago.

Annie sai da casa acenando com a mão para que eu a siga. Alguns passos adiante relata:

- Minha irmã voltou Marcus! – Diz eufórica e exibindo um sorriso preocupado – Já eram tão poucas as esperanças, mas ela está viva e entre nós novamente. Não falamos com ela ainda, a pobre estava exausta, melhor deixá-la descansar. Amanhã iremos promover o encontro das duas, mas temo pela saúde da minha mãe já tão fragilizada.

- Paulina é uma mulher forte Annie, gostaria de presenciar o reencontro e tenho certeza que isso irá lhe fará muito feliz. – Acalmo-a.

- Que assim seja, Marcus. Obrigada por ficar com a minha mãe. – Agradece secando uma lágrima e se dirigindo para a entrada da casa.

- É sempre um prazer conversar com a senhora Paulina. Até amanhã então. – Despeço-me seguindo para o armazém. Levo comigo novas dúvidas e a minha sombra alongada pelo sol do entardecer.

Encontro Mat sentado na porta do estabelecimento, com um copo na mão e rejuvenescido muitos anos, como se ao retirar os trapos que cobriam a sua esposa suas rugas também lhe fossem removidas. Era um novo homem e me lembrou meu pai, nos momentos iniciais do seu romance com Anabelle. 

O amor nos renova, concluo sentindo-me uma década mais velho com a simples lembrança da primogênita dos Faucheux.

- Tome um gole Marcus, hoje é um daqueles dias que temos motivos para comemorar. – Cumprimenta Mat já erguendo o copo na minha direção.

Bebo um pouco e me transformo em um vulcão a medida que o uísque rasga minha garganta rumo ao meu estômago, que parece se encolher de medo diante da inundação etílica. Devolvo o copo, relinchando em chamas e sou convidado a sentar. Arrasto uma cadeira até o lado de Mat e recuso uma nova dose enquanto ele desabafa:

- Sabe Marcus, passei anos me punindo por ter privado a minha filha de uma vida melhor longe daqui. Isso me corroía as entranhas dia após dia. A culpa roubava o lugar dos meus sonhos durante as noites. Sentia-me fraco, incapaz, um péssimo pai. Egoísta por querer minha esposa de volta sacrificando Dane. Mas hoje com o seu retorno tive a confirmação que a minha escolha foi a certa. Qual a chance de nos encontrar se nossa família tivesse partido daqui anos atrás?

- Poucas, Mat. – Interrompo.

- Eu sabia que ela estava viva, que iria voltar. Em muitas ocasiões durante esses anos perdidos eu podia sentir a sua presença nos observando. Como se a floresta fosse ela, não sei explicar. Nos momentos mais difíceis eu sentia que ela me acariciava quando o vento tocava o meu rosto. – Declama Mat já embalado pelas lembranças e pela bebida.

- Você tomou a decisão certa, Mat e independente do sofrimento que esses anos trouxeram, sua filha será grata a você pelo resto dos seus dias. Sua fé devolveu a sua esposa e a mãe dela. – Digo batendo nas suas costas enquanto recoloco a cadeira no lugar.

Deixo-o com a sua alegria, regada com lágrimas do passado e embebida em uísque. Entro na casa comprovando que Dane continua a velar o sono de sua mãe, recuperando o tempo perdido com horas de caricias, reaprendendo cada sinal que ela possuía ou as marca na pele com que o tempo a presenteou. Sorri quando seu olhar encontra o meu e sento-me à mesa de onde posso contemplar a cena sem atrapalhar. Reabro as páginas escritas por Lizandra buscando alguma resposta, ou simplesmente um pouco da sua presença...

"Constatada a morte do inquisidor, meu pai correu para casa. Sabia que seria uma questão de tempo até que o fervor da noticia agitasse toda a vila. Relatou a Amée o ocorrido e às pressas juntaram o que podiam carregar. A fuga tão planejada para voltar a reunir nossa família agora também se fazia necessária para salvar a vida do meu pai. Dispararam em direção ao cais sob os olhares curiosos de alguns moradores. Ao chegarem ao porto encontraram Benittes enquanto buscavam refugio em um dos navios:

- Benittes ayjudame. Tralga Lizandra al atardecer hasta acá ella debe escapar de este lugar.

Explicou o ocorrido, justificando a urgência da partida e depositando nas mãos do amigo a minha vida. Pediu muita cautela na missão porque se eu fosse capturada iriamos todos arder em uma grande fogueira, já que eles jamais partiriam sem mim. Benittes partiu em sua missão enquanto Dário e Amée se acomodavam no interior de uma embarcação que tinha como destino a Espanha.

Ao cruzar pelas ruas da vila, Benittes viu o corpo do inquisidor chegar à frente da igreja, onde um aglomerado de pessoas cochichava sobre o ocorrido. Versões sobre o incidente eram criadas e os murmúrios foram interrompidos por um velho, que se aproximou movido pela fúria e pela falta de medo que os quase mortos possuem:

- Vá para o inferno seu maldito! – Diz o senhor cuspindo contra o corpo de Laurentius. – Esse homem, que se anunciava como santo, tentou violentar a minha neta e só não logrou êxito porque foi salva pelo espanhol Dário Vega. Viva Dário! – Gritou inflamando a multidão contra os padres que se aproximavam.

Palavras de ordem e o nome de Dário eram ouvidos à medida que Bennites se afastava indo na direção da floresta. Não demoraria até que a notícia da morte exigisse uma punição e a guarda real fosse convocada para tratar da confusão. 

Uma antiga troca de favores entre a igreja e a realeza, cada uma ocultando o lado podre do outro e criando falsos pretextos em defesa do bem comum, mas na verdade em favor do seu próprio bem. Levas de soldados armados invadiam a vila e procurando  pistas as vasculhar cada casa até o porto.

Benittes me colocou a par de toda a história e aguardamos o manto da noite nos cobrir para seguirmos rumo ao nosso destino. E tingidos pela escuridão partimos, nos deparando no caminho com uma vila repleta de tochas incandescentes e soldados. Uma trilha de luz e de espadas até o porto. Nos Esgueiramos contornando o que era possível e paramos a poucos metros da embarcação onde estavam Dário e Amée. Escondidos atrás de barris, aguardamos o dispersar dos guardas que iniciavam uma discussão com o capitão do navio:

- Essa é a única embarcação onde ainda não entramos. Saia da frente ou será preso! – Falou o líder do grupo.

- Não há nada aqui para vocês e já estamos de partida como bem podem ver. – Retrucou o capitão apontando para as amarras sendo soltas e a âncora sendo erguida.

Os guardas avançaram e o capitão cedeu:

- Vão apenas perder seu tempo e atrasar a minha partida. – Disse enquanto caminhava em frente ao grupo sobre a rampa que dava acesso a embarcação.

Quando estavam próximos de entrar no navio, a um aceno de cabeça do capitão, o imediato fez as velas tremularem contra o vento e lentamente deslocar a embarcação fazendo as madeiras da rampa estalarem enquanto se partiam. 

O capitão velozmente saltou para dentro do barco, enquanto impedida de entrar a pesada guarda caía, visitando o fundo do canal. Posso jurar ter visto olhos brilhando ancorados em mim em uma das escotilhas. Se eram de meus pais eu não cheguei a descobrir porque nunca mais os vi.

Os soldados ainda tentavam invadir o barco, pendurados nas cordas que lentamente íam em direção a água, mas desistiam ou caiam no mar de onde provavelmente não mais voltarão. 

Quando a agitação cessou e a missão de captura foi dada como fracassada, as tochas foram se extinguindo e apenas uma nevoa fria cobria as ruas do porto. E foi cortando a neblina que tracei meu caminho de volta à floresta."


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