Capítulo 29

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Reescrevo meu presente sem você
Relembro o meu passado com pesar

Gasto aquela manhã explicando minha história recente para Dane, tempero seu almoço com a minha narrativa e os seus olhos com meus infortúnios. Interrompo a narração apenas durante a refeição, coberta por um véu de silencio e preocupação por parte de Mat. Acredito que a minha presença já havia deixado de ser uma boa ideia, mas a essa altura pouco poderia ser feito. Colho no ar seus pensamentos e tento acalmá-lo:

- Devo ficar apenas alguns dias Mat, em breve seguirei meu caminho. - Lanço no ar interrompendo o seu mastigar e fazendo ele me olhar tentando entender se eu podia ler o que pensava. - Ainda não consigo fazer isso Mat. - Respondo já rindo e aumentando o grau de espanto do homem que, neste momento está paralisado.

- Fique o tempo que precisar Marcus, apenas estou com um mau pressentimento, mas deve ser coisa de uma mente já cansada. - Fala Mat, voltando a encher a boca de comida.

O silêncio volta a nos cobrir e ali permanece até que cada um dos presentes desaparece em uma direção diferente. Tenho a intenção de continuar a leitura sem a companhia da senhorita Kinsey, mas ela deixa claro que está disposta a continuar quando senta ao meu lado deixando todos os demais afazeres para trás.

- Para o seu bem, espero que você não tenha pensado em continuar a ler sem a minha presença. - Sentenciou a bela Dane, enquanto se ajeitava ao meu lado com um brilho no olhar que me enchia de alegria e ao mesmo tempo de tristeza.

Respondo apenas com uma ameaça de sorriso e abro o livro onde havia parado, "Viajar acompanhado é sempre melhor", penso.

"A rápida recuperação da minha mãe Amée ecoou entre as casas da vila e gritou alto demais dentro da igreja, ensurdecendo os padres e o inquisidor. De posse da visão distorcida que dispunham, não demoraram a me condenar por bruxaria, ainda mais quando meu gesto invalidou toda a pratica abençoada e sem sentido do digníssimo representante do Senhor. Bloqueei a estrada que suas palavras queriam criar, levando minha mãe para a prometida luz a partir da escuridão de um líquido misterioso.

Não demorou até que seus pensamentos se transformassem em ação e invadissem minha casa com espadas em punho. Ouvia os gritos da minha mãe e do meu pai ao fundo, enquanto fugia assustada pela floresta. Um dos guardas pedia ajuda do lado de fora quando viu a procurada fundir-se à mata.

Corri relembrando o destino de Alberta. Sofri por pensar que meus pais poderiam agora estar recebendo algum tipo de agressão. Derrubei lágrimas de tristeza para minha família e de ódio gigantesco contra a igreja, que mesmo responsável pelas maiores mentiras da história se anunciava como a dona da verdade.

Aguardei vários dias, envoltos em pensamentos tristes de um futuro agora tão incerto e as doces memórias que a caverna da senhora Tolvaj me trazia. Em alguns momentos sonhei que enlouquecia, em outros me via queimando em uma fogueira sob os olhos do inquisidor. Acordava com sua gargalhada demoníaca, sentada na cama do meu exilio e coberta pelo suor frio do medo.

Arriscava-me diariamente a chegar cada vez mais perto de minha casa. Queria ver meus pais, falar com eles, buscar uma alternativa, fugir daquele lugar.

Em uma dessas perigosas investidas encontrei perambulando perdido meu pai. Choramos muito ao nos abraçar e após certificar-se que eu estava visivelmente bem, traçamos cuidadosamente nosso rumo até a caverna.

Conversamos por horas e agora, um pouco mais aliviado, Dário me informou que fugiríamos dali, mas antes precisava apagar o meu rastro e fazer a igreja esquecer a minha existência. Não entendi qual era o seu plano, mas concordei e passei a contar os dias para voltar a viver com eles.

Na manhã do dia seguinte, um Dário dissimulado desfilou arrasado pelas ruas da vila, trazendo nos braços um vestido banhado de sangue, como se me trouxesse morta nos braços para casa. Havia matado um animal dentro de um vestido que não servia mais em mim e o enterrado longe de nossa casa. Seu pranto era verdadeiro, reflexo do seu ódio pela igreja e não pela morte da filha. Felizmente lágrimas não podem ser lidas. Entrou em casa e aguardou os boatos de que eu havia sido assassinada inundar os ouvidos de meus perseguidores.

E trazidos pelas ondas de um mar de murmúrios, cada vez mais trágicos a respeito da minha morte, o inquisidor invadiu minha casa mais uma vez.

Encontrou meu pai e a minha mãe aos prantos acariciando um vestido ferido sobre a mesa e com os olhos cravejados de tristeza, ódio e dor.

- Onde está o corpo da bruxa? - Disse Laurentius com ausência de qualquer sentimento.

- Enterrado en el bosque, bastardo! Rugiu Dário já partindo para cima do inquisidor e sendo detido pelos outros ajudantes.

- Tragam-no! ele vai nos conduzir até o suposto tumulo da filha. - Ordenou já dando as costas.

Contrariado, meu pai os conduziu até uma cova coberta com terra fresca e decorada com uma rustica cruz, confeccionada com dois gravetos amarrados. Apontou para o lugar enquanto se controlava para não dar uma companhia humana para o finado porco que ali descansava:

- Desenterrem-na! Vamos queimá-la. - Mandou Laurentius olhando todos de cima para baixo montado em seu cavalo.

- No te atrevas! O tendrás de enterrarme junto! - Gritou Dário tentando se desvencilhar dos braços dos captores.

- Sua ideia não é má, espanhol, mas para sua sorte hoje não é o dia da sua morte. Soltem-no! Mas fique sabendo que estaremos observando vocês e não hesitarei em enterrá-lo junto aos demais da sua família, ou quem sabe queimá-los para apreciação de todos. - Concluiu puxando as rédeas e saindo a galope, levando consigo seus guardas e um sorriso desconfiado de volta à igreja.

Dário ficou ali de joelhos por algum tempo, chorando seu ódio ao porco e pensando que fugir agora não seria uma boa opção. Eles nos perseguiriam e inevitavelmente seríamos capturados, ou passaríamos a vida como fugitivos às sombras da civilização."

Nossa leitura é interrompida por gritos do Mat:

- Dane! - Seguido por algo inaudível, mas que lembrava uma oração. - Corra!

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora