Capítulo 9

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Ao aceitar a brisa do mar
Retirei o ar da minha existência

Acordo ainda sentindo os lábios molhados daquele momento. No escuro da minha casa e das minhas lembranças posso ver seu vulto na penumbra afastando-se e levando consigo minha alma. O vulto dissipa-se no ar e com ele meu coração. Fico por alguns minutos fitando um céu invisível, enquanto os batimentos cardíacos vão lentamente diminuindo voltando ao ritmo normal. Já cai, já beijei. Noite agitada essa aqui na Vila da Passagem...

Algum tempo depois, o véu do sono envolve-me mais uma vez. Beijado por Anabelle e imbuído pela poção dos sentidos já não sei para que parte da minha história irei viajar quando voltar a sonhar.

“À frente as casas vão encolhendo, meu olhar chacoalha muito com o auxilio da estrada esburacada. Sentado na parte da frente da carroça está meu tio Aden Ravensdale, irmão mais velho do meu pai e um dos que mantem a tradição da criação de gado em pé, honrando o nome da família. Morava em uma grande fazenda na costa de Somerset situada sobre uma pequena colina que termina em um paredão de pedras com uma vista suicida do mar.  Fui convidado a passar alguns dias lá e aceitei. Se há uma coisa na vida de que eu vá me arrepender até o fim dos meus dias foi ter aceito esse convite.”

O remorso desta resposta me faz acordar e lança uma lágrima de ódio e pesar contra meu travesseiro.

A doença já havia me deixado. Acredito que Anabelle a arrancou junto com aquele beijo. No final do mesmo dia eu já estava me sentindo melhor. Sendo sincero, estava radiante. Ainda me lembro da cara da Bettina  depois que a moça partiu de maneira tão repentina. Era um misto de alegria e contrariedade, sacudia negativamente a cabeça enquanto cerrava a boca para não rir. Não falamos sobre isso com palavras, e acredito que ela não tenha comentado nada com meu pai.

Já estava escurecendo quando o tio chegou trazendo uma carga de couros para o curtume como fazia com certa frequência. E após uma breve conversa com o meu pai sobre negócios e sobre a minha saúde, o convite para uns dias descansando a beira mar nasceu. Alec pareceu muito grato e eu inclinado a negar sem pestanejar, mas a ideia de arejar os pulmões, a mente e o coração pareceu-me oportuna naquele momento.

- Se isso não for causar-lhe nenhum incomodo, aceito seu convite tio, - sentenciei. E a minha resposta havia sido realmente uma sentença, mas naquele momento eu ainda não sabia.

E foi assim que na manhã do dia seguinte, sem sequer ter a chance de ver Anabelle novamente, coloquei meu corpo para sacudir rumo a fazendo de Somerset, deixando para trás tudo que era importante para mim, meu pai e o meu sol. Adormeço.

“Desembarco da carroça já ao final do dia na fazenda, tratando de colocar os ossos e órgãos de volta ao lugar. Somos aguardados por uma comitiva de criados, minha tia Earlene Ravensdale e o primo Ted, um pouco mais velho do que eu, e dono de uma reputação com as mulheres que rompe as fronteiras de diversos condados. Motivo de muito orgulho e proporcional dor de cabeça para o tio por causa dos pais e irmãos de suas conquistas.

Jantei em uma mesa barulhenta, regada por risadas e histórias de família. Eu fingia interesse, mas na verdade não entendia uma palavra sequer, pareciam falar em uma língua estranha. Estava perdido no meio dos meus pensamentos imersos no vapor das caldeiras do curtume à procura de Anabelle. E sempre que eu a encontrava eu sorria. Os parentes se entreolhavam sempre que uma pergunta era dirigida a mim e morria no silencio da minha ausente resposta. Ficavam calados mais alguns segundos e desatavam a falar novamente.

E assim a noite e a comida do meu prato esfriaram, as cadeiras foram ficando vazias, até o momento que fiquei sozinho à mesa, acompanhando com olhar perdido uma bela criada que retirava os pratos e me investigava, mantendo distância com um ar de medo. Foi quando a tia tocou no meu ombro, quebrou meu transe e informou que o meu quarto já estava arrumado, fazendo menção com um gesto para lhe seguir.

O quarto era voltado para o mar e uma grande janela aberta permitia a entrada de uma brisa que refrescava tudo no ambiente, menos meu coração. Olhando para o vazio da escuridão do mar e da noite pensei poder voar, e se eu pudesse, já sei para onde voaria. Mas o que me restou foi pousar na cama e dormir tão logo a janela foi sendo fechada, levando com ela o vento e os meus pensamentos.”

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