Naquela noite, tudo o que 2-D queria era beber. Beber, e fumar. Foda-se tudo e qualquer coisa. Estava farto daquilo. Estava farto de não ter motivos. Farto de simplesmente não existir. De ser apenas uma sacola plástica sendo soprada pelo vento numa estrada qualquer, sem qualquer rumo a se tomar, apenas flutuar.
A cada nova dose, uma outra recordação pousava sobre seu cérebro já afetado e desacelerado pela bebida. Seria possível ainda se remoer pelos antigos acontecimentos? Mas é claro que sim. 2-D ainda se lembrava. E lembrava de tudo. Ele jamais esqueceria daquela briga.
Ele estava em seu quarto, fazendo o que o fazia de melhor: cantar. Estava feliz. E como estava. Sorria para si mesmo em frente ao espelho enquanto repassava suas melhores notas. Murdoc ficaria impressionado quando percebesse que ele estava melhorando seu vocal. Pobre 2-D. Seu aquecido e gentil coração sempre ansiava por agradar o marginal e egoísta líder, Murdoc.
Sentia-se o cara mais sortudo. Seguiria uma nova carreira, sua vida estava tomando rumos engraçados, porém, inesperados, nunca antes pensados. 2-D nunca imaginaria que uma tentativa de roubo no armazém de seu pai transformaria sua vida daquela maneira. E muito menos que uma "rézada" de um carro poderia fazê-lo se aproximar do misterioso e satânico Murdoc, com quem ele viria a planejar uma banda.
E para tornar as coisas mais interessantes, Paula, sua namorada, tornara-se a guitarrista da banda. Cantaria ao lado de dois amigos e de sua amada namorada. Não podia ser melhor.
O escândalo começou com uma voz feminina, seguida de estilhaços de vidros e a voz alta e alterada de Russel, o baterista.
Descendo as escadas da pequena casa inglesa, 2-D deparou-se com uma cena nada agradável. Russel, um cara negro e baixo, mas bem rechonchudo, que sempre procurava manter-se calmo e concentrado, destruía por completo essa sua imagem impassível naquele momento. Segurando Murdoc pelo colarinho da camiseta negra, Russel o esmagava contra a parede enquanto o socava repetidamente. Paula, enrolada numa toalha de banho na porta do banheiro, praticamente nua, presenciava a cena e observava calada com uma expressão de puro temor e horror.
- Russ! Cara, o que pensa que tá fazendo? – 2-D desceu as escadas rapidamente, indo de encontro com seu amigo baterista e agarrando-se em um dos seus braços robustos e roliços, numa tentativa falha de pará-lo.
- Pergunte à puta da sua namorada, Stu! – Russel deu um último golpe em Murdoc, dessa vez soltando-o, fazendo com que o líder escorregasse pela parede até sentar-se no chão.
2-D nada disse. Olhou sua garota à porta do banheiro, que se encolhia junto da toalha, adentrando mais e mais de volta ao pequeno cômodo. No fundo ele já sabia.
Sentado junto à parede, envolto numa grande poça de sangue, Murdoc riu. Sua risada sempre maléfica e horripilante.
- Russel, Russel... eu deveria mandá-lo para o inferno...
Murdoc pôs-se a rir loucamente. Paula trancou-se por completo no banheiro. Russel limpou seu punho sujo de sangue na camiseta vermelha, que estampava um grande símbolo de "perigo biológico".
Debruçado completamente sobre uma das mesas no fundo da taberna, 2-D mantinha-se completamente no escuro. Ele riscava a madeira da mesa quadrada e descascada com as unhas crescidas e desleixadas. Fiapos daquela madeira alojaram-se abaixo de suas unhas, e não se importando com isso, ele apenas continuou, a cada vez aplicando mais força.
Ele ainda se lembrava daquele sentimento. Fazia cerca de 10 anos, mas ele ainda lembrava do que sentiu naquele dia. Se ele se concentrasse, mesmo que só um pouco, ainda conseguiria sentir exatamente a mesma repulsa e a mesma raiva. Paula fora sua única namorada em toda a vida, e ele, inocentemente, pensou que ela o amava tanto quanto ele. Mas a verdade era que ela queria a banda. Nem mesmo Murdoc. Era a banda.
Naquele momento, vendo sua garota irrompida em lágrimas, seu líder ensanguentado, e o autor da violência parado à sua frente cobrando-lhe uma atitude, 2-D sentiu-se impotente para tomar qualquer tipo de decisão. Coube a Russel, seu fiel amigo, expulsar a garota traidora da casa e da banda, e tentar, de alguma maneira chula, cuidar do nariz quebrado de Murdoc. Mais tarde, 2-D se arrependeria profundamente por sua covardia.
Olhando para a espuma de sua cerveja e balançando seu copo de um lado para o outro, 2-D ainda se perguntava. Por quê? Por que sempre com ele? Por que ele foi destinado à sofrer tanto? Constantemente sendo traído e feito de idiota. Por que raios ele tinha aquele coração tão grande e molenga? Ao ponto de querer ajudar e agradar todos? E acima de tudo, por que tinha sempre que acreditar nas mentiras camufladas de Murdoc?
Com o passar dos anos, a relação do vocalista principal com o baixista só havia piorado. 2-D passou a nutrir um ódio imensurável por Murdoc, ao ponto que se ele se visse numa oportunidade boa o suficiente, seria capaz de cometer a maior idiotice de sua vida – Murdoc não valia o sacrifício, sua alma estava mesmo vendida à BoogieMen. Murdoc certamente queimaria no inferno. E 2-D não iria acelerar o processo.
Voltando-se para as paredes de pedras rústicas e enegrecidas da taberna, 2-D tentou ao máximo concentrar-se no som tremulante que ecoava pelo bar. "Never did no harm, never did no harm". Sim, ele nunca havia feito nenhum mal. Então por que estava ali sozinho agora?
A voz de sua companheira de banda, Noodle, transbordava por toda a taberna com sua voz jovem e doce cantando "Dare", sua mais recente canção, que ela mesma havia composto para o álbum "Demon Days". E que, aliás, ela compôs por completo.
2-D sentiu o coração apertar ao lembrar que também não fazia ideia de onde estava a pequena Noodle naquele momento. Apoiou a cabeça entre as duas mãos calejadas. Odiava a si mesmo por tê-la deixado ir. Se não fosse um completo imbecil e covarde, poderia ter convencido a garota à não ir. Mas novamente, calou-se diante da situação. Frente as lágrimas de uma garota, e o riso malévolo de Murdoc. A mesma situação, repetindo-se após anos.
A música single do álbum mais recente do Gorillaz enxia todo o bar com suas batidas únicas e originais. 2-D lembrou-se de repente que era a sua banda. Era o seu álbum que estava tocando. Mas não a sua música. Afinal, era uma celebridade. E mesmo ali, sentado na última mesa, num canto escuro, numa taberna qualquer, em momento algum fora reconhecido.
O fato de ser o vocalista de uma banda contemporânea e exclusiva que havia despontado havia pouco tempo, mas que já havia conseguido um sucesso alarmante, não ajudava a deixá-lo menos exausto. Pelo contrário, a cada dia que passava, 2-D sentia-se pior. Como se suas forças estivessem pouco a pouco deixando seu corpo.
Era realmente apenas uma sacola à deriva. Uma sacola solitária, numa estrada completamente vazia. E assim seguia a vida de 2-D. Num completo vazio.
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Gorillaz: Make Me Feel Good
FanfictionDepois de Paula Cracker, o coração do doce e gentil 2-D se fechou para tudo e qualquer pessoa que tentasse transpor a armadura que ele criou para si próprio em autodefesa. Ele só não imaginava que não conseguiria ser capaz de impedir que o tiro de u...