Proteção

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Murdoc emergiu da maneira que pôde, os pulmões ardendo da maneira mais horripilante que se poderia imaginar. Soltava água por todas as partes e mal podia conter o peso do próprio corpo. Maldição. Aquele careca miserável iria pagar por aquilo. Algum dia.

Estirado na areia da pequena praia onde parou boiando, tentava recordar-se de como havia conseguido escapar do pobre Stylo, que havia caído de costas e afundado no mar. Ao perceber tarde demais a encosta se aproximando, o único reflexo do líder foi frear, sem contar com os estragos causados pela perseguição. O resultado foi uma impressionante queda livre, que fez os tripulantes saltarem de seus bancos e chocarem-se contra o teto.

O Stylo colidiu com a água de forma dura e impetuosa e, no mesmo instante, o carro transformou-se em um aquário. Conforme afundava, Murdoc recorda-se de ter se esgueirado pela janela do motorista, beneficiando-se de sua extrema magreza. Sentindo seu cérebro inchando e prestes a explodir, nadou até a superfície sem olhar para trás.

O sol acima do baixista lhe queimava o rosto e o céu estava em um azul límpido, tanto quanto 2-D. Inferno, 2-D! Levantando-se com um arrombo, Murdoc se lembrou de que ainda não vira o vocalista na praia. O movimento brusco o fez sentir vertigens, de modo que precisou ficar sentado por mais tempo do que previa.

Já de pé, o líder esquadrinhou a praia a procura do azulado, sem sucesso. Passou as mãos pelos cabelos negros oleosos e agarrou uma boa quantidade. Somente isso lhe faltava: ter afogado 2-D e a cyborg. Como raios iria lançar o novo álbum assim? Sem pensar muito, aproximou-se da enseada, a água gelada fazendo seus pés arderem dentro das botas de couro. Não muito longe, a cerca de dez passos, avistou um monte estranho e azulado em meio a espuma.

Murdoc correu em direção de 2-D e notou que ele segurava a cyborg fortemente. Rato maldito, havia salvado a guitarrista. Que benção!

- Pot! Tá me ouvindo? – o baixista agarrou o outro pelos braços, puxando-o para a praia. – Ora, essa! Por que você sempre desmaia comigo?

O líder ajeitou 2-D e a cyborg na areia, lado a lado. A garota de metal soltava pequenas faíscas de quando em quando, e um fluído verde escuro escorria pelo buraco em sua testa. Ela não parecia reagir a nada, e Murdoc teve plena certeza de que havia perdido a desgraça do seu dinheiro em uma máquina que não era a prova d'água. Por outro lado, com a movimentação, o vocalista passou a emitir alguns ruídos fortes, que vinham do fundo da sua garganta, ainda estava afogado.

Murdoc olhou para os lados algumas vezes e considerou. Se não fizesse nada, 2-D provavelmente asfixiaria até a morte. Munido da pouca coragem que tinha e movido pelo desespero de seu ardor interior, o líder ajoelhou-se ao lado do vocalista e segurou seu rosto pálido com os longos dedos trêmulos.

Os lábios do baixista capturaram os do azulado com hesitação. No mesmo instante, sentiu grande surpresa ao perceber o quanto eram macios, e uma sensação de familiaridade ocupou parte de seu peito. Com grande esforço, o esverdeado sugou rapidamente o líquido que enchia os pulmões de 2-D e, ao fazer isso, o outro não demorou a expelir uma grande quantidade de água. Ele observou enquanto o vocalista sentava-se devagar, acometido por um acesso de tosse, porém, mais vivo do que nunca.

O azulado fitou o rosto de Murdoc meio confuso. Sua cabeça doía ainda mais do que antes, os pulmões ardiam como o diabo e a visão estava turva, mas boa o suficiente para perceber a estranha expressão que seu líder mantinha. De repente se deu conta, o baixista havia salvado sua vida, de novo. Inconscientemente, 2-D levou uma das mãos à boca, cobrindo-a parcialmente.

Murdoc acompanhou o gesto do outro e sentiu seu coração falhar. Também entendeu que ele havia acabado de beijar o vocalista. Não era como se fosse um beijo de verdade, mas seus lábios se encontraram e, ele podia jurar, sentiu quando o azulado pressionou sua boca. De repente achou que o ar o abandonara e arquejou. Mas que diabo.

Ambos se encaravam como se enxergassem um elefante com bolinhas cor-de-rosa diante de si. 2-D arfava ainda incrédulo e Murdoc agarrava-se com força aos jeans rasgados. O líder abriu a boca algumas vezes para dizer algo, mas arrependeu-se em todas elas. Por fim, conseguiu quebrar o silêncio.

- Você não precisava trazê-la. – apontou para o corpo imóvel ao lado deles na areia.

- Ah não, eu não poderia deixa-la lá embaixo. – o vocalista respondeu rapidamente.

- Mas você nem gostava dela!

- Sim, mas... – 2-D lançou um olhar triste para a cyborg. – Seria crueldade.

Murdoc sentiu seu coração doer. Mas que bobalhão. Ela, com certeza, não teria se preocupado em trazê-lo para a superfície.

- De qualquer forma, não há mais nada que você possa fazer. Quase morreu à toa.

O baixista levantou-se e estendeu a mão para o azulado, que retribuiu com um olhar desconfiado e uma sobrancelha arqueada. Como não tinha mais nada a perder, agarrou-a e deixou ser puxado pela força de Murdoc, que o trouxe um pouco mais para perto enquanto mantinha as mãos unidas.

- Está mesmo bem?

- Eu... – 2-D deteve-se diante da anormal gentileza de seu líder. – Eu estou ótimo.

Mas é claro que não estava. Sua cabeça ainda doía como a hora da morte, mas ignorou completamente essa informação diante dos olhos negros de Murdoc. Havia algo diferente neles, a malícia e o sarcasmo não estavam lá. Mas tinham um brilho distinto, algo que o vocalista não podia explicar.

Sem dizer mais nada, o esverdeado o soltou e deu as costas, pondo-se a andar. 2-D empertigou-se, sem saber o que fazer. Olhou do líder para a cyborg, e gemeu de descontentamento ao perceber que Murdoc abandonaria a máquina na praia. Apesar de odiar a ideia da substituição de Noodle, o azulado não conseguia conceber o pensamento de deixar para trás algo que tivesse as feições da menina.

- Ei! Você não pode deixa-la aqui!

- Quem disse? – o baixista respondeu sem olhar para trás.

- Ela ainda pode funcionar! Talvez nós possamos concertá-la ou, ou, eu não sei. Mas você não pode fazer isso! – o vocalista tentava seguir o outro com passos curtos, para não se distanciar muito da cyborg. – Você não pode abandoná-la como fez com a Noodle!

Murdoc parou no mesmo instante, os músculos enrijecendo rapidamente. Girando nos calcanhares, ele lançou um olhar cortante à 2-D, que também havia estacado em seu lugar, agora arrependendo-se de voltar a colocar o nome da garota no meio de uma discussão.

- Não fale sobre o que você não sabe. – disse, os dentes trincados. – Você não tem ideia do que aconteceu e continua a tagarelar!

- Eu não tenho como saber se você não me contar! – o azulado gritou de volta, os braços esticados em direção do líder.

- Tudo o que você precisa fazer é aceitar a porra da situação! Olha só para gente agora, temos mais em quê pensar do que continuar um assunto que já está acabado!

- Não estaríamos aqui se não fosse por sua causa! E teríamos para onde voltar se você não tivesse botado fogo na Kong só por dinheiro!

O esverdeado ultrapassou os dez passos que os separava em menos de um segundo. Parou diante do vocalista bufando de raiva. Ele sabia muito bem que a culpa da maioria dos problemas que cobria o Gorillaz era totalmente sua, mas nunca se dignaria a aceitar isso ou escutar de outra pessoa sem protestar. Seus olhos faiscavam, a respiração estava cortada, mas ele só enxergava 2-D.

O azulado o observou em silêncio a poucos centímetros de si, e viu no rosto transtornado do líder a chance de permanecer assim. Murdoc parecia querer devorá-lo naquele instante, examinava suas feições e tentava decidir, internamente, se o colocava para dormir de novo ou não.

Gorillaz: Make Me Feel GoodOnde histórias criam vida. Descubra agora