Assim que adentrou o quarto, 2-D jogou-se em um dos beliches de metal azul, aninhando-se nos lençóis mais brancos que já vira na vida. Escondendo seu rosto nos travesseiros, ele tentava segurar uma quase irrefreável vontade de gritar, tanto de indignação quanto pela sensação de medo que ainda percorria seu corpo. Apesar de esforçar-se para manter a serenidade na maior parte das vezes, o tal ocorrido havia sido demais para ele.
Depois de horas rodando na estrada, fugindo sem rumo – e sem muitos percalços – das garras do penetra careca, embrenhados em uma chuva agourenta, Murdoc, 2-D e a cyborg Noodle chegaram até a freguesia de Lingfield, em Surrey. Após tanto tempo confinados, era natural que precisassem descansar. A tarde dava lugar a um crepúsculo rosado e limpo quando encontraram um albergue simplório e antigo. Mesmo contra a sua vontade, o líder precisou aceitar que estava terrivelmente cansado para continuar dirigindo.
Como se a sorte estivesse, pela primeira vez, do lado daqueles tipos estranhos, o quarto em que foram colocados estava completamente vazio. Havia quatro pares de beliches espalhadas pelo grande cômodo verde-claro, todas eles perfeitamente arrumados com seus lençóis e travesseiros branquíssimos. Era realmente um achado que estivessem sozinhos ali.
Murdoc andava de um lado para o outro do quarto, quase arrancando tufos de cabelo de quando em quando. Ele resmungava coisas incompreensíveis, o que 2-D julgava ser melhor assim. Sentada em uma das camas como uma estátua, a cyborg o observava atenta; a única coisa que se movia nela eram os olhos negros e vidrados, que acompanhavam a peregrinação incessante de seu mestre.
2-D também observava o líder a uma distância considerável, com alguns travesseiros sobre a cabeça. A inquietude de Murdoc o incomodava. Eles haviam conseguido escapar de seu perseguidor sem problemas; haviam conseguido um lugar para passar a noite; e estavam vivos! O que poderia estar errado?
- Inferno! O que há com você? – 2-D exclamou finalmente.
Ao ouvir a voz esganiçada do vocalista, o esverdeado pareceu ser arrancado de um transe. Ele virou-se rapidamente em direção à 2-D apertando os olhos, como sempre fazia quando considerava se deveria se segurar ou não.
- Será que você é assim tão burro, rato? – ele esbravejou, cerrando os punhos. – Não podemos voltar! E como pretende pagar por essa espelunca?
- Você fugiu sem dinheiro? – os olhos negros de 2-D se arregalaram enquanto ele se endireitava na cama. – No que estava pensando?
- Ah! Eu realmente planejava fazer uma viagem à Surrey hoje! – Murdoc retrucou com sarcasmo. Ele continuava andando em círculos, mas agora parecia estar à beira do desespero.
O azulado entendia, mas nunca daria o braço a torcer. Ambos haviam fugido da Kong às pressas, não havia tido tempo para nada. Era isso, ou agora poderiam estar jazendo em algum corredor escuro e alagado do estúdio. Ele sabia muito bem que Murdoc estava completamente quebrado; o baixista nunca fora uma pessoa especialmente econômica. 2-D possuía sua própria reserva secreta no banco, mas não lhe agradava em nada a ideia de usá-la com Murdoc, muito menos com aquela máquina monstruosa. De qualquer forma, a culpa era do próprio líder, por ter provocado alguém mais forte do que ele.
Os três se encararam por alguns minutos em silêncio. Não havia nada que pudesse ser feito. O azulado empertigou-se na cama, pensando se deveria ou não oferecer o pouco que ainda era seu. Murdoc já havia estado em situações piores, e sempre havia se safado. Ele poderia muito bem encontrar uma solução agora, nem que isso envolvesse os três tendo que, novamente, cometer uma fuga.
Entretanto, o coração bondoso de 2-D recusava-se a isso. Ele já havia se sujeitado a muitas coisas pelo Gorillaz e por Murdoc, mas comprometer a fonte de renda – e muito provavelmente a única – daquela pobre senhora simpática que os recebera, estava além de suas capacidades. Sendo assim, ele estava disposto ao sacrifício, mas não naquele momento. Nada poderia ser feito até a manhã seguinte, então, pensou que gostaria de dormir mais uma noite sem ser um completo falido. Assim que acordasse, diria a Murdoc que pagaria o albergue e nada mais. Sim, estava decidido. Mas naquela noite, ele ainda seria uma celebridade esquecida com algumas notas no banco.
Alheio aos pensamentos de 2-D, o baixista deixou-se vencer pelo cansaço em uma das camas. Na verdade, ele não dava a mínima para o fato de ter que pagar pela estadia, o que ele temia era chamar a atenção da polícia: Surrey era um dos condados em que Murdoc vandalizara na juventude, portanto, tinha lá sua fama entre os oficiais. Sendo assim, ele sabia que deveria ser o mais discreto possível enquanto estivesse na vila. Ao mesmo tempo, seu cérebro imundo começava a maquinar seus próximos passos.
Naquela noite, 2-D precisou tomar mais uma decisão considerável: deixar-se dominar pela exaustão evidente e entregar-se ao convidativo sono que já lhe fechava as pálpebras, ou manter-se acordado, velando pela própria vida. Apesar de todo o cansaço, dormir no mesmo ambiente que duas pessoas com índoles questionáveis não era uma tarefa fácil. Mesmo assim, ele não tardou a adormecer e teve sonhos confusos com carros híbridos que se transformavam em submarinos.
*
A aurora mal tinha tocado o firmamento quando 2-D despertou. O quarto ainda estava completamente escuro, graças as cortinas grossas sobre a pequena janela, mas ainda era possível ver uma forma mexendo-se no cômodo. Um cheiro estranho preenchia todo o lugar, mas o sonolento 2-D não foi capaz de identifica-lo imediatamente. Ele esfregou os olhos meio contrariado, como uma criança que foi acordada cedo demais em uma manhã de férias. Tentando entender o que acontecia, ele notou dois pontos brilhantes na escuridão direcionados a ele. Engolindo um seco, arriscou:
- Murdoc?
As luzes do quarto se acenderam quase no mesmo instante. O líder estava parado perto da porta, ainda com a mão sobre o interruptor; a cyborg, ao seu lado, olhava 2-D como se o repreendesse. Ambos estavam cobertos por manchas negras e era deles que o estranho cheiro vinha, o qual o azulado finalmente havia se lembrado: gasolina.
- Você não deveria estar dormindo? – Murdoc disse entre dentes fingindo uma cordialidade que não era típica.
- Vocês não deviam estar dormindo? – 2-D retrucou sem pensar muito. – Onde é que vocês foram?
Murdoc empertigou-se um pouco enquanto andava pelo quarto, tão distraído que parecia não saber o que estava fazendo. Ele lançou alguns olhares para 2-D, coçando o queixo. O baixista não era o tipo de homem que fazia rodeios, mas parecia ter dificuldade para dizer o que precisava ser dito, e não conseguia imaginar o porquê.
- Olha, Pot, eu estou completamente duro e aquele maldito careca não vai deixar de nos procurar. – ele começou.
- E o que uma coisa tem a ver com a outra? – 2-D arqueou uma sobrancelha à menção do próprio sobrenome. Murdoc sempre o chamava por algum insulto.
- Eu precisava tirar grana de algum lugar... E então me ocorreu! – Murdoc fez um amplo e exagerado gesto com as mãos, como se tivesse descoberto um país inteiro. – Por que não o seguro da Kong?
2-D ergueu-se num pulo, sentando na beirada do segundo andar do beliche. Seus olhos negros poderiam saltar das órbitas se fosse possível. O que é que aquele duende tinha feito dessa vez?
- O que quer dizer? – perguntou, já sentindo um medo crescente da resposta iminente.
Murdoc olhou para os lados, talvez procurando pelas melhores palavras. Quando abriu a boca para dizer algo, a cyborg o interrompeu com o estalido de um isqueiro prateado sendo acionado, um sorriso enorme e temível cortava seu rosto mecânico.
- O que essa coisaestá fazendo agora? – 2-D perguntou depressa, aos poucos entendendo o que osimbolismo significava. – Por que ela tem um isqueiro, Murdoc? O que isso querdizer? Ela... vocês... o que você fez?
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Gorillaz: Make Me Feel Good
FanfictionDepois de Paula Cracker, o coração do doce e gentil 2-D se fechou para tudo e qualquer pessoa que tentasse transpor a armadura que ele criou para si próprio em autodefesa. Ele só não imaginava que não conseguiria ser capaz de impedir que o tiro de u...