Afeto

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Ao acordar, tudo ainda lhe parecia embaçado. Piscou uma, duas, três vezes, até que seus olhos enegrecidos se acostumaram novamente com a luz que artificialmente caia sobre seu rosto pálido.

2-D mal se lembrava do ocorrido. Não sabia quanto tempo havia ficado ali, nem como tudo se resolveu, só sabia que doía, e doía muito. Não podia acreditar que Murdoc havia mesmo tentado matá-lo.

Tentou levantar-se, mas sua cabeça pesava toneladas, como se todo o sangue que deveria ser bombeado pelo corpo tivesse se concentrado ali. Tombou novamente na cama, mas conseguiu virar-se para o outro lado.

Sentado num amontoado de roupas, Murdoc dormia pesadamente com os braços cruzados sobre o peito. Sua respiração compassada balançava harmoniosamente o pingente de cruz invertida que levava no pescoço desde os primórdios do Gorillaz.

A cena despertou nostalgia no azulado. Quando seus olhos foram brutalmente danificados pelo acidente em sua juventude, Murdoc muitas vezes repousou no hospital com ele. Mas obviamente, esta foi sua penalidade. O líder foi sentenciado a prestar serviços e cuidados ao 2-D e sua família durante todo o resto de suas miseráveis vidas. Deve ser por isso que até hoje Murdoc não o matou, mesmo chegando muito perto de tal.

Sem poder mover-se, 2-D contentou-se em observar seu satânico algoz. Notou que sua pele, também pálida e sem vida, esverdeava cada vez mais. Talvez isto tivesse algo a ver com o pacto que havia feito com o demônio BoogieMan. O vocalista não tinha certeza, mas podia jurar que Murdoc havia vendido sua alma e todas as conquistas do Gorillaz ao bicho-papão.

- Seu maldito duende verde... – resmungou.

Bastou o mínimo suspiro de 2-D para que o guitarrista começasse a se remexer em meio ao embolado de roupas. Com um grunhido de satisfação, abriu os olhos e fitou 2-D, que o observava da cama.

- Olá, princesa. – riu, ironicamente, enquanto passeava a língua pelos dentes.

Lentamente o líder colocou-se de pé, em frente ao azulado, e aproximou seu rosto do dele. "Foi por pouco...", balbuciou em seu ouvido.

- Por quê? – a voz do vocalista saiu fraca e baixa, sentia o ardor da respiração de Murdoc em sua pele.

- Eu ainda vou foder com você.

Com essas palavras, o guitarrista deixou o quarto, com uma expressão perigosa e os lábios duramente cerrados.

O que ele quis dizer?

*

Descendo as escadas, Murdoc trombou com Russel, que subia rapidamente em direção ao quarto do amigo.

- Hey, cadê o Stu? – Russ direcionou-se impassível para o líder.

Murdoc limitou-se a olhá-lo com desprezo e continuou seu caminho sem nem se importar com o questionamento. Antes que pudesse se afastar mais do que 2 degraus, sentiu a pesada mão de Russel pousar em seu ombro.

- Vamo com calma aí, Niccals. Eu tô falando contigo. O que fez com o Stu?

Russel e Murdoc viviam em um clima indiferente há mais de 10 anos. Ainda era nítido que o líder guardava ressentimentos de Russel após o incidente com Paula Cracker. Obviamente, ninguém fica feliz com alguém que lhe quebra um nariz, mesmo que você mereça muito isso.

- Eu não devo explicações a você, Hobbs. – respondeu secamente, retirando a mão do companheiro num gesto esnobe.

Sem se importar com mais nada, Murdoc continuou seu caminho e desapareceu na escuridão de um dos enormes corredores da Kong. Por sua vez, Russel rumou ao quarto de 2-D.

Diante da porta, parou e considerou, tomou fôlego. Entrar no quarto do vocalista era um verdadeiro desafio, tamanha era a quantidade de informações e objetos espalhados. Podia não parecer, mas Russel Hobbs era um rapaz ordenado e, muito, muito organizado.

Espiando pela fresta da porta, notou que 2-D ainda estava deitado. E a julgar pelo balanço de seu corpo, estava respirando. Concluiu que o rapaz estava dormindo, então resolveu deixa-lo ali, descansando.

Já ia deixando o local quando percebeu as pequenas polaroids no chão, em várias delas percebeu seu rosto. Russ não era o tipo de cara curioso, mas naquele momento sentiu-se tentado a entrar e ver as pequenas peças.

Empurrou a porta de metal vagarosamente e entrou o mais furtivo que pôde, a fim de não acordar o amigo. Agachou-se sobre o tapete e roupas onde as fotos estavam acumuladas. Observou cada uma com cuidado.

O baterista reconheceu diversos locais, várias pessoas, vários shows e muitos momentos que, pelo o que parecia, eram inesquecíveis para 2-D. Notou que a maior parte das fotografias eram da época do álbum "Gorillaz", quando Noodle havia chegado a pouco tempo e ainda estava se habituando ao peculiar estilo de vida dos três rapazes.

De repente, tornou-se nostálgico também, como se as polaroids tivessem o poder de deixar qualquer um que as tocasse pensando no passado. Na época de tais fotos, Russ passava por um momento difícil: o exorcismo de seus demônios.

Lembrou o quanto foi complicado se livrar de seus fantasmas, e como aquilo o afetou pessoalmente e a própria banda, porque agora eles não tinham mais um rapper. Recordou o quanto 2-D se empenhou em trazê-lo de volta enquanto Noodle se aventurava no Japão em busca de suas origens.

Olhou para o amigoque dormia serenamente na cama. Pensou o quanto considerava-o como um irmãomais novo, e sentiu que deveria cuidar dele, a qualquer custo. Notou também oquanto 2-D estava ferido, e ele sabia, não era só fisicamente.

Gorillaz: Make Me Feel GoodOnde histórias criam vida. Descubra agora