Nem mesmo Murdoc conseguia acreditar em como havia conseguido convencer a cyborg Noodle de que havia sido Boogiemen a machucar 2-D. Mas o tinha feito e, enquanto ela corria feito louca atrás do bicho-papão, tratou logo de abatê-la com muitos tiros de fuzil e terminar de afugentar o monstro.
Agora, sentado diante daquele robô cheio de conexões e fluidos, mal fazia ideia de como iria fazer para reprogramá-la para o que era antes. Ao mesmo tempo que tentava conectar tudo o que havia destrinchado, seus pensamentos iam e viam para 2-D, que ele havia arrastado para uma sala submersa assim que a confusão acabou.
- Merda! - Murdoc resmungou ao levar mais um pequeno choque. - Eu devia jogar no mar essa lata velha inútil.
Com um rompante, ele se levantou e caminhou até as grandes janelas de vidro do quarto em que estava, esfregando as têmporas. O céu da madrugada era escuro e cintilante, mas já havia algumas nuances roxas anunciando a alvorada muito próxima. O baixista parou um pouco para observar a paisagem lá fora. Era deslumbrante. Então seus pensamentos o levaram para alguns dias atrás, quando, na praia, 2-D havia parado para mirar as estrelas.
Tinha sido um completo desgraçado de novo. Simplesmente não conseguia acertar nem mesmo quando tentava. E, por todos os demônios existentes, Murdoc se odiava por isso. Odiava quem era e tudo o que representava. Tinha sido assim desde sempre, desde criança. Não havia nada que fizesse e saísse - de fato - correto.
Já estava destinado a ser o que era. Precisava aceitar isso. Não. Já tinha aceitado. Mas, em algum momento dos últimos dias, tinha desejado não ser. Em algum lugar dentro da escuridão perversa de seu coração e mente, desejou que tudo fosse diferente. Que pudesse ser uma pessoa melhor, um músico melhor. Um líder melhor.
Murdoc chutou o nada, e seus pés começaram a se movimentar, levando-o a contragosto para a câmara onde havia prendido 2-D. Àquela altura, o vocalista já deveria ter acordado de seu desmaio. O esverdeado pulava com pressa as pontes que ligavam os módulos, a escuridão da Ilha de Plástico era esmagadora. Por mais que vivesse numa eterna briga de cão e gato com os membros do Gorillaz, Murdoc odiava estar sozinho.
O líder entrou em um corredor muito iluminado e claro, até chegar numa portinha de ferro ao seu fim. Seus dedos longos giraram a trava redonda com um rangido e a empurrou. Uma ante sala escura e úmida se revelou e, do outro lado dela, uma nova porta. Murdoc se aproximou com cuidado e passos lentos, observando pela escotilha o seu interior.
2-D estava sentado quase no mesmo lugar onde o baixista o havia deixado horas antes. Os braços franzinos abraçavam as pernas, o rosto estava enterrado nos joelhos. Murdoc sentiu um nó se formar na garganta, a saliva quase não descia pela traquéia que, fechada, o impedia de respirar direito.
Com um suspiro longo e entrecortado, o esverdeado deu algumas batidas na porta antes de abri-la de uma vez. 2-D não se levantou, mas o encolher dos braços o denunciou. Murdoc se aproximou devagar, reticente, não sabia o que dizer.
- Pot? - chamou.
Silêncio.
O líder se aproximou um pouco mais, parando ao lado do vocalista.
- Pot! - repetiu, agora com a voz mais firme.
2-D lentamente ergueu o rosto, os olhos escuros e molhados encaravam o baixista com fúria. Murdoc recuou um passo, desconcertado.
- Eu só vim pra... eu...
- Pra quê? Pra rir da minha cara de novo? - o azulado vociferou, mas sem sair da posição em que estava.
- Eu estou rindo por acaso? - Murdoc levou uma das mãos à cintura, e abriu um sorriso amarelo.
- Se não vai me soltar, Niccals, dá o fora daqui!
Dito isso, 2-D voltou a repousar o rosto sobre os joelhos, sem se importar de verdade com a presença de Murdoc que, por sua vez, abria e fechava as mãos sem saber o que fazer.
- Ora, deixa disso, Pot! Não é a primeira vez que brigamos!
- Você me apagou! - a voz do azulado saiu abafada pelos braços.
- Também não é a primeira vez que faço isso. - Murdoc não conseguiu segurar uma risadinha, e se repreendeu por isso.
2-D ergueu a cabeça mais uma vez, exasperado. Por fim, resolveu se levantar e, com dificuldade, se arrastou para perto do outro.
- Nada disso é novidade pra você, Murdoc. - começou, olhando fundo nos olhos de seu líder. - Também não é pra mim. Mas você me usou pela última vez.
- Pot, eu não te usei, entenda isso! - Murdoc o interrompeu - Não dessa vez, pelo menos!
2-D o observava com os olhos mais frios que o baixista já tinha visto no outro. Não era do feitio do azulado agir assim, mas, Murdoc sabia que não podia culpá-lo por isso.
- Você vai ter que matar.
- O quê?
- Vai ter que me matar e arrumar um cyborg igual a mim, pra cantar pra você.
- Pot...
- Vai ter que me substituir por uma máquina igual fez com a Noodle! Só assim pra você ter o Gorillaz e sua fama de volta! - a voz de 2-D esganiçava a cada meia dúzia de palavras - Se bem que até as máquinas você consegue fazer ficarem contra você, não é Murdoc? Nem um monte de parafusos simpatizam com você.
O líder escutava tudo com apreensão. Nunca quis a morte de 2-D, nem mesmo quando - por causa dele e seus inúmeros acidentes, teve que passar horas no serviço comunitário. Murdoc nunca havia desejado que 2-D morresse e, apesar de atentar contra sua vida por diversas vezes, esse jamais tinha sido seu objetivo.
Quanto mais o azulado falava, mais o baixista sentia que seu coração - se é que era possível, diminuía de tamanho. Sabia que nada do que dissesse iria mudar os pensamentos de 2-D, mas lhe incomodava saber que era assim que o outro o via.
- Pot, você ama cantar. E ama seus fãs, vai mesmo jogar tudo para o alto por causa de uma briguinha ou outra?
2-D encolheu os lábios, segurando a raiva que sentia. Seus dedos já se fechavam em punho mas, pelos sete infernos, se socasse Murdoc agora, era capaz de quebrar o próprio pulso e braço tamanho era seu ódio naquele momento. Respirou fundo, tentando colocar seus pensamentos em ordem.
- Eu prefiro morrer do que cantar de novo. - disse, dando as costas e dando por encerrada a conversa.
Murdoc preferia que 2-D lhe tivesse dado um tapa. Podia até mesmo ser um soco. Se quisesse, poderia até chutar suas partes íntimas. Poderia ser o que fosse, menos ver aquela expressão no rosto do azulado. Menos ouvir que havia destruído isso também. Primeiro foi a sua antiga vida, a do Stuart Pot, aquele adolescente bondoso e gentil, o repositor de conservas; agora também havia destruído a vida pós-acidente, a do 2-D, que havia se descoberto na música, que amava profundamente cantar e, ainda mais, os fãs que o adoravam.
2-D estava novamente sentado no chão, com a cabeça ajeitada entre os joelhos, os braços apertando as pernas com força. Era tudo o que ele tinha. Era tudo o que 2-D tinha! Murdoc, Noodle, Russel, a banda. Era só isso que 2-D tinha.
E, agora, Murdoc percebeu, não tinha mais nada.
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Gorillaz: Make Me Feel Good
Fiksi PenggemarDepois de Paula Cracker, o coração do doce e gentil 2-D se fechou para tudo e qualquer pessoa que tentasse transpor a armadura que ele criou para si próprio em autodefesa. Ele só não imaginava que não conseguiria ser capaz de impedir que o tiro de u...